Liv começou sua carreira no teatro com alguns bons personagens em ótimas peças e não demorou pra que Ingmar Bergman, um dos diretores de cinema mais refinados da história justamente por causa da sua bagagem no teatro, a colocasse no seu elenco de atores de alto escalão artístico. Quem acompanha Bergman sabe que ele tem um grupo restrito de atores que ama repetir sempre e sempre. Ullman não foi nem de longe a que mais esteve em suas obras, ou se quer a que esteve em maioria de suas obras primas (embora figure em muitas delas), não posso se quer dizer que ela foi a sua favorita, entretanto há algo de diferente nesta relação que gerou um casamento que eu também não sei explicar. Ela nunca fez uma coadjuvante estando nas mãos de Bergman e não há estrelismo aqui. É que sua atuação é tão primordial que mesmo que apareça da segunda metade do filme pra frente (A Paixão de Ana) ou não fale uma palavra se quer durante todo o filme (Persona) ela consegue convencer o público da sua legitimidade como atriz.
Falando um pouco sobre Persona, o filme mais experimental de Bergman e um dos mais psicológicos do cinema, nesta obra Liv dá vida a uma atriz, Elizabeth Völgler, que simplesmente deixa de falar, após uma série de acontecimentos e vai para uma ilha se manter reclusa junto de sua enfermeira interpretada pela majestosa Bibi Anderson. Lá a personalidade da enfermeira começa a se confundir com a de Elizabeth. Bergman nos apresenta um monólogo eterno numa série de cenas poéticas e experimentais o suficiente pra nos fazer ficar imersos nos complexos da mente e da isolação social (e parece que estamos vendo muito disso, seja no mais recente de Robert Edgers, O Farol ou nos dilemas da Pandemia que vivemos atualmente). Extremamente complexo e fluído o longa capta a capacidade exímia que a atriz tem de atuar. A representação parece ser algo que está no seu sangue de e assim como ele corre pelas suas veias também emana a genuína capacidade de transmitir verdade nas suas expressões. Em especial neste longa ela precisa se valer das suas expressões, mas elas não são demasiadamente caricatas como num filme de cinema mudo. Aqui há um naturalismo, um silêncio expressivo, uma voz que sai do olhar. Juntamente com os dilemas existencialistas dos roteiros bergnianos a atuação de Liv entrega uma complexidade que habita no interior e se expressa naturalmente como uma vontade de se entregar ao papel e mesmo que nada seja dito você consegue entender suas falas.
Se por um lado em A Paixão de Ana temos uma Liv mais fria e reclusa, em Sonata de Outono, ao lado de Ingrid Bergman (aqui em seu melhor papel no cinema), temos uma atuação calorosa, inquietante e quase que pronta pra explodir a qualquer momento. Há uma necessidade da catarse nas mãos inconstantes e ansiosas de Ullman neste cenário. Ela está tímida, mas precisa urgentemente dizer tudo que está na sua garganta e este cúmulo se culmina num dos maiores diálogos da história do cinema. O argumento é tão verdadeiro que você pode sentir essa filha injuriada e injustiçada pela mãe que de certa forma inconscientemente a despreza, gritando dentro de você. A atuação é tão complexa que seria possível dissecá-la; não somente da Liv, mas também da Ingrid, que simplesmente consegue roubar todo o brilho da cena para si quando a câmera mira em seu olhar arrependido, mas displicente. É o embate de duas gigantes. É a fúria contra a raiva. Há tanto peso e tensão guardados que esse sentimento de estar se libertando é passado para o telespectador com louvor. Distante daquele cinema hollywodiano, livre e destemida Ingrid exprime o seu talento de uma forma tão pura que azeita a personagem e podemos nos compadecer da sua condição irresponsável de fuga, do seu desastre materno e da sua descompensação. Mas por outro lado já afogada na teatralidade de bergman, apaixonadamente emotiva e leve Liv consegue nos fazer sentir a mesma repulsa e fascínio que a personagem sente pela mãe e mesmo que ela a julgue com duras palavras, entendemos seu sofrimento. O dilema das relações.
Mesmo em uma realidade onde Ullman não é o foco realmente da trama ela consegue seu carpe diem com louvor, extraindo o melhor de si para o personagem. Numa pomposa produção, mas também intimista, vívida de cores contrastantes e saturadas, Gritos e Sussurros é um filme sobre o toque e a repulsa do toque. A sexualidade, o abuso e aversão. Aqui dividindo a tela com outras estrelas de Bergman, igualmente talentosas, ela vive a mais libertina de três irmãs. Ingrid Thulin vive uma conservadora que de alguma forma teve um péssimo contato com o sexo e por isso o teme e o repreende em todos os aspectos possíveis, já Harriet Anderson está se compadecendo no leito de morte em meio às lembranças de abandono, da solidão e do desamparo. Há muita sensibilidade nos temas abordados, mas também na captura das imagens que insiste em frisar o vermelho, preto e branco. Morte, redenção e pecado. Sangue, vida e depravação. Repreensão, perturbação e arrependimento. Como sempre Bergman dá preferência para as complexidades e dilemas das relações humanas, mas aqui ele deixa que as imagens falem mais que o diálogo. Carregada de peso e dor a irmã mais velha grita em noites agoniantes, ela brame trêmula a cada vez que a morte lhe sopra o ouvido. Cheia de culpa e proibições a irmã do meio fala por falas interruptas sobre os seus pesadelos e suas restrições. Mas entre a fala e o grito existe o sussurro e ele está aqui sendo representado pela furtividade pecaminosa da irmã mais nova. Liv dá um caráter descompromissado pra essa personagem. Mesmo casada ela tem seus casos e não suporta a ideia de ser negada por algum deles. Ela precisa desse sentimento de pertencimento, mas não somente por uma, mas por várias pessoas. Sua alma parece sofrer aflita em busca dessa atenção. Entre toques negados e aceitos, ela brilha na sua personagem mais dúbia até então. Você nunca sabe se deve julgá-la ou aceitá-la. Você a quer por que no meio da morte que esbraveja em silêncios ensurdecedores e a moralidade fala em murmúrios perversos, existe a fuga, o escapismo que sussurra melodicamente em doces harmonias a pura sedução. Um grito de liberdade. E estas três vozes, como se em poéticos arabescos, ornam um cenário hipnotizante. É quase como se nós estivéssemos em uma pintura do Caravaggio, contemplando três irmãs que não se conectam por causa de seus próprios complexos.
Por qué você deveria ver Liv Ullman em tela?
Face a Face, de 1976 pode responder isso. Aqui Liv Brilha sozinha. Neste longa que apesar de longo e extramamente lento, nos culmina para a cena final onde a atriz que vive uma psiquiatra assombrada pela morte e depressão tem seu momemto de catarse. E amigos, que monólogo! Que interpretação! Que texto e emoção. Brilhantemente eloquente a personagem expõe seu trauma, sua raiva, seu ódio, sua violência, sua injúria, seu medo, sua fobia. Eu sou um grande entusiasta do cinema e mediante de tudo que já assisti eu não me lembro de uma atuação tão viva, naturalista, real e verdadeira como esta. Você se incomoda com a angústia, a aflição e agonia da personagem. Vê-la atuando é uma experiência. É um evento, um momento. E por essas outras que você deveria ver Liv Ullman em tela.
Persona e Gritos e Sussurros estão disponíveis no telecine e Face a Face no cine lá carte. A paixão de Ana está disponível no Youtube.