Lançado em 1995, Neon Genesis Evangelion é um anime que se passa após o chamado "segundo impacto", evento ocorrido quando o humano entrou em contato uma entidade chamada de Adão, no polo sul, acarretando na extinção de 50% da população. Situado no ano 2015, (o que é louco de imaginar pois já estamos em 2021) os humanos sobreviventes, descendentes da entidade nominada Lilith, tentam se defender das ameaças dos "Anjos", descendentes de Adão que poderiam causar um terceiro impacto. Para dar cabo desta função, a SEELE, organização religiosa que detém os famigerados Manuscritos do Mar Morto (1940), cria a NERVE, setor responsável pela criação dos EVA's, maquinas orgânicas imensas, que se parecem robôs, e que podem ser pilotadas somente por jovens que conseguirem atingir uma determinada taxa de sincronização com a máquina. E, tudo isso funciona como uma corrida contra, ou favor de um plano de instrumentalização humana, a destruição total das barreiros do ego, que resultaria numa grande consciência coletiva representando, desta forma, uma espécie em ascensão ao status de divindade - e porque não, a realização de objetivos pessoais de alguns personagens.
Certo, tudo isso pode parecer um tanto quanto confuso, principalmente pra quem ainda não teve a oportunidade de assistir Evangelion, e isso também é muito confuso pra quem já viu a série, mas sinceramente, nada disso é o que realmente importa, porque nesta série, nada nunca é o que parece.
O conceito nem é tão importante assim...
Decorar todos os elementos mitológicos que Evangelion nos apresenta, não significa absorver tudo o que a série tem a nos dizer, até porque nada disso, não é nem de longe, a prioridade. Em algum momento da trama começamos a perceber que este "culto à mitologia" é apenas um coadjuvante, para uma série de outras coisas que verdadeiramente protagonizam o enredo.
Esse é um caminho comum na estrutura de Evangelion, as referências externas servindo como função prática pra que algo interno seja, por fim, representado. Um grande exemplo disso é a existência do Campo A.T. (ou como costumamos chamar: Campo do Terror Absoluto), que consiste numa barreira impenetrável, dentro da realidade, em que os Eva's e os Anjos podem usar tanto pra se defender, tanto pra atacar, e como consequência somente um poderia destruir o outro. Se trouxermos este conceito pra filosofia, ele nos remete ao Dilema do Ouriço, parábola escrita por Arthur Schopenhauer, em sua obra Parerga e Parapilopema, de 1851. Schopenhauer nos conta sobre ouriços que podem morrer de frio se afastarem-se demais uns dos outros, contudo se machucam com os espinhos uns dos outros quando se aproximam demais. Esse é o subtexto filosófico por de trás do campo A.T..
Essa barreira é definida por Kaworu, como sendo "a barreira que todos têm em seus corações". Pode parecer raso, entretanto o campo A.T. ou Dilema do Ouriço resultam exatamente nisto mesmo: a ideia de quando a gente se fecha, podemos machucar os outros, mas quê quando nos abrimos, podemos acabar nos machucando. E sim, estou falando do sentido emocional mesmo, sentido este que todo mundo pode entender e se identificar; sendo que no final das contas é sobre isso que Evangelion verdadeiramente está buscando responder.
Pra mim, é muito preciosismo tentar levantar barreiras de uma suposta intelectualidade super complexa por de trás da obra, quase como se fosse necessário se valer disso pra provar a qualidade do anime num ato soberbo e pseudo cult, no que acaba afastando o público mais casual, como se ele não merecesse o que Evangelion tem a oferecer, quando na verdade nem mesmo a série se leva tão a sério.
E é isso, no máximo o que pode parecer complicado demais em Evangelion é a sua roupagem, o conceito, os termos, mas na real, elas não realmente não importam nem um pouco. A prova disso se dá quando em momento algum o anime não tenta se explicar. Sim existem as informações sobre como por exemplo as sementes de Adão e Lililth vieram parar aqui na terra, mas isso nem é discutido ao longo dos capítulos.
É interessante salientar que apesar disto, nada aqui é meramente posto por puro charme ou pra embutir o status de cult, pelo contrário, todos os conceitos são cuidadosamente bem posicionados, de forma até menos óbvia do que poderia, e eles se valem dentro da narrativa
É tudo sobre relações humanas
Não por acaso o cabo que energia dos Eva's, literalmente se chama "cordão umbilical" e sem ele essas máquinas não conseguem funcionar por mais de 5 minutos. Questões a respeito das ligações familiares são universais e estão em quase todas as obras que existem, mas o que move a série são os conflitos humanos que qualquer um de nós podemos ter.
O anime faz questão de jogar isso na nossa cara sempre e sempre, claro, de maneira sutil, mas faz. Talvez o maior exemplo disso seja o de quando os personagens não recorrentes da SEELE, que só existem pra dar andamento na trama, são subitamente substituídos, sem explicação alguma, por monólitos inteligentes e isso não faz diferença alguma pra história.
Entender a referência, a parte externa é focar apenas numa parte não muito significativa de tudo que o anime representa e que provavelmente é a menos importante. A verdade é que a pessoa que assistiu Evangelion e não conseguiu captar todas as referências bíblicas, a parte filosófica mais teórica ou em todos os aspectos tecnológicos, esta pessoa não necessariamente não entendeu o anime. Mesmo no arco da instrumentalização humana, que ocorre da segunda metade em diante, sendo um dos pontos mais importantes da trama e que evoca grandes questões filosóficas sobre convívio e sociedade, subjetivamente está ali com a função de levantar uma única grande questão: Eu como indivíduo, tenho valor?
No fundo todos estamos sozinhos, exaustos e interpretando personagens
No meio de toda a empolgação de monstros e robôs gigantes, fortalezas subterrâneas e o destino da humanidade em risco, o Shinji é a pessoa que olha pra tudo isso e diz: não, eu não quero fazer parte dessa coisa. Como um garoto que é rejeitado pelo pai e que sente-se carente do calor materno, a uma passo que instintivamente conecta qualquer presença feminina à sua volta a um papel de maternidade, é justo compreender que ser colocado constantemente em locais e situações de risco, não é uma coisa grandiosa para ele, mesmo que isso seja em prol da humanidade. Por causa disso ele hesita incerto, ele teme vacilar e se mostra fraco, e para alguém colocado nesta posição, esse comportamento é totalmente natural.
Os primeiros dois episódios da série se desprendem no conflito do Eu que paira sobre a sombra de Shinji. Não temos uma luta no primeiro capítulo porque Shinji precisa decidir se quer ou não pilotar aquele robô e quando a temos, no segundo capítulo, há um vazio anticlimático e inexistência de um tom vitorioso, mesmo que o Anjo tenha sido derrotado. Há uma monotonia inexplicável, quase torturante, nestes dois primeiros momentos, mas é que na verdade você está esperando algo sobre lutas de robôs e se frustra ao perceber que isso não é Evangelion.
É comum esperarmos nos animes protagonistas energéticos, dispostos a fazer justiça e salvar o mundo mesmo que suas vidas pessoais estejam numa pairando em uma fossa de desgraças. E exatamente este o ponto. Evangelion não gosta disto. Evangelion te faz questionar como é irresponsável jogar o peso do futuro do mundo nas costas de crianças que ou são órfãs, ou passaram por algum trauma e ninguém está levando isso consideração, mesmo quando todos os personagens ao redor estão vendo o estrago psicológico que essa pressão está causando.
O Shinji é um personagem passivo, que não consegue se impor e de fato não tem muita personalidade, aliás quase nenhuma, todavia porém, mais importante do que isto, ele é complexo emocionalmente; muito diferente do estereótipo ativo e unidimensional que o homem costuma ser representado com ideais de honra, coragem e propósito. O fato de que todas as mulheres à sua volta têm muito mais ação e gerência do que ele provavelmente agrega bastante na forma como os outros personagens masculinos da trama o tratam. Shinji sente medo, não se enxerga capaz e nem merecedor do próprio lugar em que está; e o anime está muito interessado em entender de onde surgem estas questões, como também observar outras possíveis qualidades do personagem, do que entregar uma experiência menos intimista.
É evidente que Shinji não é visto como individuo, já que todos os seus conflitos são apagados. Eles nem chegam a ser desrespeitados, bem como os limites postos em cheque, porque ninguém ali se interessa por eles. Shinji está disposto em mostrá-los, mas ninguém está disposto a enxergá-los. O que eles esperam é que Shinji também negue suas questões e se torne um verdadeiro herói de anime, portando uma persona à altura, ignorando o seu Eu e suas coisas pelo outro, seja internamente pra salvar o mundo, ou externamente pra te agradar como personagem; e cara isso foi tão sagaz da parte de Hideaki. É um exercício de metalinguagem muito interessante.
Ao lançarmos um olhar sobre Gendo, pai de Shinji e diretor da NERVE, notamos que ambos são completos opostos. Nele percebe-se toda a autoridade e agressividade que se espera do garoto, talvez por isso, para a massa consumidora do anime, Gendo seja um personagem agradável, mesmo que suas motivações sejam sempre tão egoístas. Contudo, quando na reta final, vemos o personagem desmoronar, retraindo-se de sua persona corajosa, nos deparamos com um homem frustrado, fraco e extremamente vulnerável.
Não somente, Gendo, mas todos os personagens em algum momento, desmunem-se de suas personas e começam a questionar seus papeis dentro da sociedade. Acontece com a Asuka, quando ela revela toda a sua solidão parental e como estava constantemente em busca de ferramentas pra lidar com o vazio que lhe deixaram, mesmo que pra isso fosse preciso soar desesperada por atenção. Outro momento importante é quando Misato analisa suas relações amorosas fazendo um paralelo com a relação estremecida que mantinha com seu pai. De acordo com ela, tudo em seu pai era odiável e digno de reprovação, mas todos os homens com quem manteve algum tipo de laço amoroso, eram exatamente iguais ao seu pai. Isso sem falar nas diferenças entre a cientista Ritsuko e sua mãe, que mesmo nunca aparecendo paira como uma sombra em sua vida e sendo assim, ela deseja ser diferente de sua mãe em tudo. Enfim, conflitos humanos.
O mais interessante disto tudo é notar como Shinji é o único personagem não interpretando um personagem, inicialmente, mas sendo forçado a entrar em um que soe mais otimista e atrativo para o público. As pessoas, mesmo vocês telespectadores, não estão interessados no verdadeiro Eu, mas sim numa performance que agrade. Hideaki sabia disso quando criou o personagem e o criou justamente pra isso, pra incomodar o telespectador. Isso explica o fato de Shinji não ser um personagem querido.
o preço disso tudo é perca individualidade
Somente quando descobrimos que Gendo e seus superiores desejam secretamente fundir toda a humanidade em um único ser, com um único corpo e uma única consciência num projeto aperfeiçoamento da humanidade, é que nos fica evidente a crítica que Evangelion se propôs a fazer. Pra que isso possa acontecer, toda a sua individualidade precisa ser rompida, esquecida e renegada e como consequência, todos viveriam dentro de uma divindade que é a soma de todas as vidas humanas. E, por mais tentadora que pareça essa oportunidade, a de transmutar-se em um deus, se você parar pra analisar, vai perceber que por de trás da casca, dentro do casulo, reside uma extrema violência. Sim, porque se apagar em prol dos objetivos e quereres do outro é indescritivelmente violento.
Quando pensamos na ideia de instrumentalização da humanidade, ou o aperfeiçoamento, pensamos numa espécie de evolução, quase parecida com a que nos é apresentada em 2001, Uma Odisseia no Espaço, (1969) em que o humano se transforma numa consciência para além do simples entender da raça. Contudo, isso não é uma coisa boa, porque no momento em que o humano deixa de ser por si, ele passa a ser pelo outro ele já não mais existe. No contexto de Evangelion, quando toda a humanidade se converter nesta magnânima, mesmo no status de divindade, ainda assim estará sendo porque este era o desejo daqueles executivos da SEELE.
Hideaki, provavelmente se inspirou na obra de Cordwainer Smith, autor de Instrumentality Of Mankind, uma outra obra de ficção científica em que retrata um mundo onde os humanos têm suas individualidades roubadas.
Despersonalização
Na metade do século XIX, o psiquiatra francês Jean-Étienne Dominique Esquirol, recebeu uma carta desesperada de um de seus pacientes. Nesta carta, o paciente reclamava de sintomas que chamaram a atenção do médico. O trecho:
"cada um dos meus sentidos, cada parte do meu ser age como se estivesse separada de mim. É como se eu não conseguisse sentir mais nada, e perco-me tentando ser alguém para alguém. Me vejo e não consigo me enxergar."
Poucos anos depois esta correspondência virou material de pesquisa do neurologista alemão, Wilhelm Greisingner, que percebeu semelhanças entre os sintomas do relato na carta e de seus próprios pacientes. Sobre isso ele escreveu:
"Muitas vezes vemos os insanos, especialmente os melancólicos reclamarem de um tipo estranho de anestesia. Eles dizem que ouvem, enxergam e sentem, mas que os objetos não os alcançam, como se houvesse uma barreira entre eles e o mundo externo."
O relato de Gresingner é de 1845, mesma ano em que o poeta Amiel, usou pela primeira vez o termo "despersonalização", ao escrever em seu diário os sintomas de um estado em que se encontrava:
"Eu me vejo como alguém que enxerga a minha própria existência de um ponto de vista além do túmulo. em outro mundo. Tudo é estranho pra mim. É como se eu estivesse fora do meu corpo e da minha individualidade. Estou despersonalizado. Separado. À deriva. Será que isso é loucura?"
E no final daquele século, em 1898, o psicólogo francês introduziu o conceito da despersonalização oficialmente na literatura médica. E depois, Freud viria entender a despersonalização não somente como uma patologia, mas também como um mecanismo de defesa da mente. Sobre isso, Feud escreveu: "A teoria da psicodinâmica fornece base para conceituar a dissociação como um mecanismo de defesa. Dentro dessa estrutura a despersonalização pode ser entendida como um mecanismo de defesa contra sentimentos negativos, conflitos ou experiências."
A despersonalização é tratada de maneira bastante direta em Evangelion. Especialmente nos episódios 19 e 20. Shinji, acaba perdendo o controle da Unidade EVA 1, e desta forma não podendo controlar a máquina o inimigo é devorado em uma cena grotesca. Depois disso, não conseguindo lidar com os sentimentos negativos, com os conflitos e com a experiência da situação, o corpo de Shinji se desfaz, restando apenas o uniforme vazio. Essa é uma metáfora muito clara ao processo de descaracterização que o menino vinha sendo submetido desde que aceitou se transformar num piloto de EVA.
No final, tudo isso tudo me leva à fala de Satre: É porque eu existo como indivíduo que os outros também são.
uma reflexão sobre os dois últimos episódios
Existe um burburinho pela internet, muito generalizado por sinal, de que Evangelion só fica bom lá pelo capítulo 16 e só é bom até o capítulo 24, o antepenúltimo; sendo que os dois últimos, 25 e 26, são considerados um lixo. Eu devo discordar veemente disto.
Por mais que os primeiros episódios sejam objetivos e eficientes em estabelecer o tom da narrativa e apresentar os personagens, essa primeira metade do anime é realmente bastante episódica e a sensação de que a trama está avançando para algo demora realmente a chegar. Mas, não acho que seja justo reduzir a primeira parte da história em algo que o telespectador precisa "suportar" pra chegar na parte que verdadeiramente valia a pena. Todos estes 15 primeiros episódios são essenciais, não apenas pra estabelecer todos os símbolos e conflitos que serão explorados mais tarde, mas porque nos dão momentos pra respirar e se importar com o objeto principal da trama: os personagens.
Esse preciosismo todo que relega a primeira parte da obra como algo inferior e até como algo passável, reflete a mesma miopia que tenho debatendo desde a aurora deste post: essa mania de pensar Evangelion principalmente como uma sequência de eventos e não como um estudo profundo de personagens. E o exemplo máximo disso se encontra logo à frente: a rejeição absurda que sofrem os dois últimos capítulos.
O que mais se lê por aí, é que esse final é mal feito. Embasam este argumento no fato de que na época o orçamento pros dois capítulos finais era extremamente reduzido e de que os criadores fizeram às pressas qualquer coisa desastrosa que estava longe de ser a ideia inicial, porque a entrega já estava em cima do prazo; e que por isso eles não tem valor. Sim, realmente houveram problemas relacionados à verba na produção destes últimos capítulos, o próprio Hideaki já falou disto várias vezes, mas muito pelo contrário isso só fez com que Evangelion seguisse por uma vertente artisticamente mais abstrata, explorando mais da arte do desenho.
a intenção do autor é a intenção do autor
Para além disto, ainda é questionada a verdadeira intenção do autor. Obras de arte são produtos do seu tempo e consequências de um milhão de influências complexas que vão muito além do que o autor sabe descrever. Não significa que só porque você queira fazer um filme denunciado o racismo que você não seja racista, por exemplo.
Quando falamos sobre arte, por mais que uma coisa influência a outra, não dá pra resumir a obra no que autor quis fazer, mas sim concretamente o que ele fez. Se o que ele entregou no final é interessante artisticamente ou não. E, eu amo este final!
Hideaki consegue transformar estas limitações em linguagem, entregando um esquema único que funciona demais no sentido subjetivo. Numa repetição de frames e frases que coloca a superfície destes personagens contra a parede, como numa metáfora de autoquestionamento, eles se tornam sufocados pelo julgamento alheio enquanto precisam lidar com seus conflitos simbólicos. Talvez a parte mais tocante, e também a mais simbólica, é quando nos é apresentado o frame de Misato, que ao questionar a sua importância como ser vivente, se mostra cada vez mais quebrada por dentro enquanto organiza e empilha pecinhas de montar.
Enfim, o que incomoda essa galera é que o final da série não se converteu em um espetáculo megalomaníaco cheio de luzes, sangue e gritos como geralmente são os finais. Essa galera se chateia porque o final de Evangelion é uma composição orgânica de sensíveis movimentos intimistas que sempre, desde o primeiro capítulo, foram o foco da série. Por mais que nas cenas finais o anime não tenha entregado a "qualidade técnica" de que ele gostaria, ainda sim entrega o que autor queria desde o começo.
O lance de usar os rascunhos, no último episódio, tá longe de ser uma prova de que foi algo mal feito ou alo do tipo; é inclusive uma forma muito inteligente de representar graficamente o que a narrativa está nos dizendo. Os personagens se despindo de toda parte externa e se expondo ao máximo.
O arco principal de Evangelion, é basicamente sobre como Shinji não via sentido para a própria existência e aos poucos vai começando a se identificar como um piloto dos EVA's, não porque queria, longe disso, mas porque obedecer ordens era um tipo de mecanismo de defesa, pra que não fosse mais uma vez abandonado. Shinji sentia ódio da sua própria pessoa e por isso não podia amar mais nada. E seu histórico de abandono o torna incompetente na tarefa de se relacionar com os outros e crescendo num mundo defasado, sem um referência familiar e um acúmulo de pressão social, não percebendo seu valor, tornou-se impossível enxergar a si mesmo. Shinji tem consciência das suas questões, mas as nega incessantemente, obedecendo sempre e sempre. E quando, Shinji é o único personagem a perceber isso negando-se a participar do plano de consciência coletiva, reconhecendo-se como um sujeito único e singular, destaca-se dos outros, já que todos à sua volta também estavam numa feroz batalha contra seus conflitos, mas muniam-se de máscaras pra não se sujeitarem a um papel de fragilidade. Ao reconhecer-se ele é aplaudido na famosa cena do Parabéns, a que virou meme, como um símbolo de coragem por priorizar a si mesmo. Isso funciona muito bem, não só pra sociedade japonesa, mas também universalmente: se enxergar não como função, mas como individuo. E talvez você não goste do Shinji, mas não dá pra negar que ele é um personagem muito bem construído.
O Outro:
Durante a produção de Evangelion, Hideaki passou por um período bem complicado de depressão e a o anime surgiu da canalização desses sentimentos, bem como reflete toda sua essência. Shinji incorpora não só o próprio estado de espírito do diretor como também abraça qualquer jovem médio com dificuldade de se relacionar e que não vê proposito na vida. O fim da série pode ser visto como uma mensagem encorajadora neste sentido. Mas, não era isso que o público queria. Hoje pode se notar otaku padrão insatisfeito com a conclusão a espumar por fóruns na internet, mas na época a recepção foi ainda mais negativa, por parte do público e da imprensa. O resultado disso é o OVA The End Of Evangelion, que muitos consideram "o verdadeiro final de Evangelion.
O filme começa com a cena mais inquietante de toda a franquia, a cena da masturbação de Shinji, sobre o corpo de Asuka que desacordada sobre uma maca descasava. Esta não é a única cena em que Shinji agride Asuka em prol e provar ao seu pai, ao telespectador e a si mesmo, a sua masculinidade, tomando para si o papel viril e energético que um protagonista de anime precisa ter. É perceptível que Shinji não se sente confortável neste papel, mas mesmo assim ele faz, porque é o que outros esperam que ele faça e sendo assim ele está fazendo. Não somente isso, mas o filme também entrega todo o espetáculo visual que cobrado: lutas em grande escala, cores encantadoras e aquelas cenas impactantes e memoráveis da sublimação de Rei. Tudo isso é tecnicamente impressionante, mas a realização da violência gráfica não é a única discrepância entre os dois finais, existe uma diferença essencial de tom.
Para Hideki, o final que foi ao ao ar é o verdadeiro final, como ele mesmo já disse muitas vezes, é o final dele e o que ele considera. The End Of Evangelion, não é um final substituto, alheio à repercussão final da série, é o reflexo direto disso. Outro ponto curioso é que a experimentação gráfica também ocorre no filme, o que faz cair por terra aquele argumento vazio de que a linguagem visual não fazia sentido. Mas, se na série o anime quebra a quarta parede mostrando os rascunhos da obra, aqui ele a usa pra criticar a maneira como os animes funcionam. O final do filme não é um redenção, não é um aprendizado. É mais uma agressão. Como se pra esse público que não percebeu que a salvação pras dores daqueles personagens tenha sido o afeto, a única possibilidade da vida seja de fato machucar as pessoas.
Evangelion é uma obra vanguardista, que toca em temas delicados e aborda questões muito pessoais. O drama de Shinji, ministrado com muita delicadeza durante a primeira parte do anime, foi só um sinal de que esta história se tornaria revolucionária. Uma revolução não somente para a história do gênero Mecha, mas para a história do anime como um todo. Hoje em dia esses aspectos podem parecer mais comuns, afinal muitas obras atuais no mercado mainstream buscam retratar essas questões, mas vale lembrar que Evangelion é um anime de 1995, foi pioneiro em muitas coisas.