Milleniuns estão obcecados com a Gen Z
16:16Antes de qualquer coisa, preciso contextualizar uma ideia que carrego comigo: as datas que delimitam as gerações são, na prática, aproximadas demais, ou seja, inconsistentes, não? Os especialistas dizem que a Gen Z nasce entre 1996 e 2008, alguns esticam até 2010. Mas, na minha visão, ser Gen Z não é apenas uma questão de calendário: é, sobretudo, ter vivido a infância nos anos 2000 e início da década seguinte. Isso é o BÁSICO.
Veja só, também criticam a obsessão com skincare, os estilos que a geração tomou para si — clean girl, sad boy, cottagecore, tomboy — como se houvesse algo de errado em buscar uma estética mais subjetiva, centrada nas próprias fabulações, criatividade e imaginação. Ontem mesmo vi um post no Instagram onde a criadora de conteúdo preocupava-se que a Gen Z não frequentava baladas ou discotecas mas é a geração, até então, que mais frequenta a terapia, e isso por algum motivo é deveras preocupante. Isso não deveria ser algo positivo?
Outro post de uma página trend apontava as divas pop atuais são “fracas” por não cantarem sobre festas infinitas, mas sobre inseguranças, feiuras, invejas, medos existenciais. Num vídeo viral um pai chorava ao ver uma de suas filhas, adolescente, também chorando num show da Olívia Rodrigo, enquanto entoavam juntas uma canção em que a cantora diz que estar cansada de sua cara, que já havia comprado todas as marcas de batons e ainda assim sentia-se feia, incompleta [pretty isn't pretty]. Os pais nos comentários estavam horrorizados: "Não deixaria meus filhos escutarem uma música como esta!", comentou alguém; "Antigamente as músicas eram pra elevar o astral, hoje em dia é pra incentivar e incitar a depressão nas crianças. Deus me livre disso!", comentou outra pessoa.
E ainda estou tentando entender qual o mal disso? Condescendamos que música é uma forma de arte [ou seja, expressão] e nada mais natural que além da alegria, prazer, paixão e sexo, apareça também tristeza, inveja, raiva, frustração e ansiedade em nossas produções artísticas sonoras, não é?
Arte só é arte se for bonita e feliz?
Olívia Rodrigo, Billie Eilish, Clairo, Aurora, NewJeans, todas falam daquilo que arde dentro do peito e da alma, e não do brilho que encobre [ou mascara] a dor. É um choque de valores [cultural e social - descarga elétrica]. É que os millennials cresceram num tempo em que a rebeldia estava muito ligada ao hedonismo, à festa, ao se divertir como se fossemos "morrer jovens", jargão da Kesha. Já a Gen Z, pelo o que temos acompanhado, reivindica uma estética do autocuidado, da introspecção, da terapia, do questionamento existencial e da autoexpressão. Isso mexe com o ego millennial, porque sugere que o paradigma deles envelheceu.
Depois, de forma bem contraditória, um post afirmando que a Gen Z estava trazendo de volta os anos 2000 e tornando o que antes chamavam de cringe, em cool [apenas pelo fato de que Sabrina Carpenter usou no VMA de 2025 um look em homenagem à Britney Spears]. Isso me leva a dois questionamentos: Por que esta constante inspeção em cada mínimo passo da Gen Z? E; Quando decidirão se somos a geração oposta que os acha ultrapassados ou se estamos tentando reviver a adolescência deles num mar de referências Y2k? Porque, ou é um, ou é outro. Parece haver muita expectativa aqui... hm, isto é, que a geração de jovens atual corresponda, n'lagum grau, o que a geração de jovens anterior confabula para ela.
O ponto primário é: os millennials parecem, de certa forma, projetar sobre a Gen Z tanto uma nostalgia de si mesmos quanto uma frustração de não serem mais o “epicentro” cultural. Essa é talvez a maior ferida millennial: eles não aceitam que nossa geração não os idolatre. Que nossas referências, ao contrário do que esperavam, não sejam Rihanna, Gaga, Kesha ou Beyoncé — símbolos de uma época que já não nos diz respeito. Nossa arqueologia cultural foi muito mais radical e para isso precisamos destrinchar uma coisa [VAI SER RÁPIDO, EU PROMETO!]
Quando olhamos de perto as referências artísticas da Gen Z, fica ainda mais evidente como os millennials erram ao imaginar que seríamos filhos diretos de sua cultura pop. Cada artista que simboliza nossa geração carrega um baú muito mais amplo de memórias musicais, quase sempre vindas de outras décadas:
-
Sabrina Carpenter, a nova queridinha do pop, a loira do momento, bebe diretamente da fonte do country-pop clássico. Seu álbum mais recente traz ecos evidentes de Dolly Parton, inclusive no visual loiro volumoso, [particularmente em seu novo lançamento Men's Best Friend] além de gestos que remetem a Olívia Newton-John entre a fase country, Grease e até o deboche de Physical, há muito da teatralidade pop irônico de Madonna dos anos 80 e da performance dumblond de Marilyn Monroe.
-
Chappell Roan (que muitos enxergam como “a Lady Gaga da Gen Z”) constrói-se como herdeira da estética camp de Cyndi Lauper, do exagero performático e queer de Divine e da intensidade poética de Kate Bush. Sua dramaticidade, porém, também dialoga com o funk eletrônico dos anos 80 e 90 que moldou as pistas naquela época.
-
Doja Cat, que nasceu em 1995, poderia ser dita por alguns como uma millennial [mas eu discordo disso] é um caso à parte: sua sonoridade e estética está totalmente pautada nos anos 70 e 90, no soul, no funk, no disco, trazendo ecos de Grace Jones, Donna Summer e até Prince, coisas do city pop japonês, ou do lo-fi [que inclusive é uma criação popular da Gen-z]
-
Olivia Rodrigo, frequentemente rotulada como discípula de Taylor Swift ou a nova Avril Lavigne, na verdade carrega uma maior influência de Courtney Love, Alanis Morissette, da agressividade emocional do Nirvana, do deboche elétrico de Joan Jett e da visceralidade das bandas de rock feminino dos anos 70, como Heart. Se pensarmos mais, podemos ainda falar sobre Tori Amos, The Cranberries e não é como se Avril não a tivesse a inspirado [mas a própria Avril é fruto de Alanis]
-
Clairo, a queridinha do bedroom pop, que começou numa vibe meio lo-fi como Doja Cat, atualmente se aproxima do folk e do soft rock, trazendo uma suavidade herdeira de Bonnie Raitt, Carole King, Vashti Bunyan e Joni Mitchell: mulheres que criaram universos sonoros de intimidade e vulnerabilidade nos anos 70.
-
NewJeans, fenômeno do K-pop, em seus três anos de existência, trouxe no DNA estético a herança dos anos 90: muito UK Garage, ecos de Kylie Minogue na fase house e também no Fever, além de influências claras do R&B de e do pop minimalista europeu, 2step, minimal berlim, entre outras coisas do cenário nipônico como Ritsuko Okazaki, Nino and Round Table e Seiko Matsuda. [O mesmo para a Pinkpantheress aqui]
-
Aurora, por sua vez, mergulha no etéreo: é herdeira direta de Kate Bush [o último álbum comprova isso, a todo momento senti estar ouvindo o Hounds Of Love], mas também de vozes angelicais e etéreas como Sarah Brightman, do misticismo new-age de Enya e de tradições nórdicas folclóricas que ela resgata para o presente.
Raveena, a pérola indiana do pop atual, aproxima-se de Sade, um, pouco de Anri, Minnie Ripperton, o neo soul de Erykah Badu, uma Mariah Carey do Butterfly ou Lauryn Hill.
Billie Eilish, por fim, talvez o símbolo máximo da Gen Z, é outra filha do experimentalismo e da poesia que vem de Kate Bush (especialmente na estrutura composicional), de Björk, de Fiona Apple, do experimentalismo de Radiohead, Massive Attack e até da melancolia japonesa de Akina Nakamori ou dos tons de Tori Amos. Billie é a prova viva e mais interessante de que geração Zê sabe recombinar linguagens do passado para criar algo absolutamente novo. Contudo não há como negar que Billie é extremamente influenciada por artistas como Lana del Rey e Amy Winehouse, artistas [fora da caixinha] da era millennials, e precisamos falar sobre isso.
Não há como negar que algumas artistas millennial inspiraram, em algum grau, nomes da Gen Z. Lana Del Rey, por exemplo, é a grande exceção de sua geração: sua estética cinematográfica e confessional moldou Lorde, Melanie Martinez e, de maneira muito evidente, Billie Eilish. É notável como Lana não apenas influenciou quem veio depois, mas também atravessou sua própria época, basta observar como Taylor Swift, a partir do folklore, reformulou completamente sua sonoridade para se aproximar daquilo que Lana já propunha desde seu debut em 2010.
Da mesma forma, sendo um fenômeno cultural absoluto nos anos 2000, Britney Spears inevitavelmente deixou marcas, ainda que restritas às artistas Gen Z mais voltadas ao pop. Embora esse caminho seja mais raro em nossa geração — cujas principais cantoras preferem outros gêneros — é visível a forma como Addison Rae e Tate McRae resgataram e reinterpretaram a energia girlypop de Britney em seus trabalhos mais recentes.
E há também, a já mencionada, Amy Winehouse, que, mesmo com uma carreira curta, deixou uma sombra longa. É possível perceber traços de sua intensidade confessional em artistas atuais, sobretudo em Billie Eilish.
Mas há um detalhe importante a ser destacado: tanto Amy quanto Lana falam de decadência, tristeza, depressão, traição, solidão. Essa é precisamente a antítese da estética millennial, que sempre proclamou para si o hedonismo, o blasé, a boêmia, do brilho das raves, da celebração exagerada. É por isso que Amy e Lana soam tão nossas, isto é, apenas uma opinião...
[Adendo necessário: o curioso é que os próprios millennials não reconhecem Lana e Amy como suas maiores referências, eu diria que o mesmo para Norah Jones... talvez Dido e até Lily Alen.]
Creio eu que os millennials esperavam que os ídolos deles fossem o chão cultural da Gen Z, assim como seu comportamento fosse moldar o comportamento da geração sucessora, mas não é isso que acontece, como vimos. E aqui está o ponto central: os millennials nos chamam de frágeis, ou geração nutella, mas é porque não compreendem que nossa fragilidade não é derrota é uma estética, uma linguagem geracional. E através de nossa humanidade que nos comunicamos, somos mais sensíveis, politizados, desconstruídos, performáticos, questionadores e sobretudo, mais interessados em nossas próprias complexidades.
E afinal, que mal há em uma geração preferir se reconhecer em filmes como A Bruxa, Noite Passada em Soho, Midsommar ou O Farol ou ainda se dedicar a investigar o cinema de mestres como Yasujirō Ozu ou Ingmar Bergman, em vez de se nutrir de comédias como American Pie, dos universos hiper saturados da Marvel ou amar incondicionalemente As Apimentadas? Ainda amamos Garotas Malvadas, As Patricinhas de Beverly Hills, Legalmente Loira ou De Repente 30, mas cada geração tem as referências que mais dialogam com seu comportamento, e a nossa encontrou TAMBÉM [não apenas] no desconforto, na reflexão e na angústia estética um espelho mais fiel da complexidade humana.
No fundo, a obsessão dos millennials pela Gen Z revela menos sobre os seus outros do que sobre eles. Eles queriam ser lembrados como o centro, como o ápice cultural, como quem moldaria o futuro. Mas o futuro, AINDA, não os escolheu. Quem sabe a geração Alpha vem aí, hein?
0 comentários