Novelas

a mentira, segue sendo uma das melhores novelas mexicanas

08:36

 

e eu estou falando da versão de 1998, embora seja a única com este nome, o argumento já teve diversas  adaptações...


um enredo demasiadamente chamativo porque a mentira tem perna curta

Sem sombra de dúvidas este é um dos argumentos mais originais das tramas mexicanas. Ricardo (Rodrigo Abed) amava Virgínia (Karla Álvarez), mas ela só queria tentar lhe dar um golpe (e estava dando certo), mas quando seu primo, João (Sergio Basañez) retorna da Europa ela vê a oportunidade perfeita pra um golpe mais seguro e dispensa Ricardo que extremamente injuriado ao perceber o golpe se suicida. Contudo João se apaixona por Verônica (Kate Del Castillo), sua outra prima e os planos de Virgínia vão por agua à baixo. Acontece é que Demétrio (Guy Ecker) irmão de Ricardo volta para vê-lo e descobre tudo o que aconteceu. Disposto a se vingar ele vai atrás da mulher que arruinou a vida de seu irmão, mas acaba se confundindo, pensando se tratar de Verônica, por quem se apaixona imediatamente. Percebendo, Virgínia implanta provas e joga todo a culpa para cima da prima que é difamada e subjugada. Para piorar Demétrio e ela se casam e juntos vão para uma pequena cidade inóspita, onde morava Ricardo. Lá Demétrio fará Verônica pagar pelo o que não cometeu, todavia, contudo ele se confunde entre amor  e ódio. O jogo vira quando Virgínia é desmascarada e Verônica tem sua dignidade recuperada tomando forças para conseguir se estabelecer e agora Demétrio é quem terá que sambar até conseguir recuperar o amor de Verônica.

Aqui nos temos uma história atraente que atiça o telespectador. Contada num tom policial vibramos à medida que a verdade vem à tona, mas a trama não se vale apenas disso. Temos um enredo muito bem explorado sobre tráfico de drogas e o consumo de drogas. Observamos o salafrário amigo de Virgínia seduzir e induzir jovens, à medida que os traficantes interferem nos negócios da família Negrette. 

Realizada para o horário pra 17hrs, a novela fez um sucesso estrondoso tornando-se a versão mais interessante dessa trama.

atuações mais naturalistas

Estamos acostumados com o exagero caloroso, até mesmo irreal, das telenovelas mexicanas. Esse é um estilo de atuação famoso por lá que chega às vezes passar uma certa inverdade. Mas, nesta novela podemos contemplar atores tentando fazer as representações mais naturalistas possíveis. Não há aquele desespero tradicional nas suas feições. Kate Del Castillo se mostra uma das melhores atrizes novelística da sua geração. Ela é centrada, carismática e está completamente dedicada à sua personagem passando assim muita verdade com a sua atuação. Você sinceramente é levado pra dentro do contexto. Guy Ecker, nosso brasileirinho, com certeza é o que chama mais atenção. Acostumado com roteiros policiais, o ator entrega uma atuação quase americanizada. Suas feições não são exageradas, mas elas são o suficiente pra chegarmos à conclusão de que talvez ele se trata de um psicopata. Karla, com sua cínica atuação, também não fica atrás. Aqui ela se mune de uma persona muito ingênua, mas consegue ser ácida o bastante pra haver desconfiança. Ela faz questão de parecer que é fingido e está nítido que sua bondade é duvidosa e só não vê quem não quer. Fora o trio principal toda a gama de atores selecionados está bem centrada no naturalismo das expressões. Destaco a presença de Rosa Maria Bianchi, grande dama do teatro mexicano que apesar de atuar num papel coadjuvante o representa com maestria. 

(adendo: não estou dizendo que as atuações exageradas são ruins, você consegue captar a mensagem através da exuberância, mas deve-se entender que o objetivo de A Mentira é criar uma obra mais realista, focada na captura natural das expressões humanas.)


personagens mais complexos

Os três personagens principais são bem mais complexos que estas tramas realmente costumam apresentar. Geralmente eles tendem a são superficiais e nos mostram poucas camadas. Demétrio é com toda certeza o melhor personagem nesta versão. Vemos os conflitos internos e morais do personagem que se descasca bem na nossa frente. O vemos agressivo, complexado, irônico e perturbado. Ele ama Verônica por que a acha a mulher de sua vida, mas odeia Verônica por achar que ela é a causadora de todo mal. O Fascínio, o desejo, a paixão e ódio andam juntos nesta ocasião. Todo comportamento dúbio do personagem, por mais que seja complicado, é justificável. Enquanto isso acontece podemos assistir uma Verônica confusa e que deseja entender tudo o que acontece ao redor. Ela almeja sair deste relacionamento, tem medo, mas também sofre de uma espécie de Síndrome de  Estocolmo, mas não exatamente. Entretanto, Verônica não é apenas uma mocinha convencional. Ela não chora ou sofre injustamente neste primeiro momento. Ela quer descobrir  o que está acontecendo e qual é o motivo por estar sendo tratada tão mal pelo homem que  anteriormente a havia seduzido. Ela peita o comportamento dele e este talvez seja o melhor momento da história. Quando os dois personagens exalam tanta química nas cenas calorosas de briga carregadas de emoção e mobilidade. Verônica tem uma personalidade forte e marcante, mas ela não é uma deslocada ou uma barraqueira desajeitada, muito pelo contrário. Contudo à medida que tragédias e mais tragédias vão acontecendo na vida da personagem a vemos se tornar cada vez mais fraca emocionalmente. A um passo que depois de um sequestro, duas tentativas de assassinato e um falso diagnóstico de câncer ela está completamente desestabilizada e sem estruturas precisando do apoio emocional de todos à sua volta. Então toda aquela força dá lugar a uma fragilidade e carência justificável. Parece até que ela segue o caminho contrário das mocinhas típicas (primeiro frágil, passa por um mundarel de coisas e então se torna decidida e voraz). É notar então o trabalho para humanizar esses personagens. Ninguém depois de passar por uma penca de acontecimentos trágicos se torna alguém pleno ou constante. Talvez a personagem que mais tenha me deixado surpreso tenha sido Tia Sara. Depois de recriminar o comportamento mais pra frentex e livre de Verônica, quando descobre que foi  dura demais com a mesma para privilegiar Virgínia, entra num sentimento de tristeza profundo. Ela se sente mal e culpada por tudo de errado que se deu e obviamente envergonhada por ter desprezado tanto a sobrinha, sempre julgando-a. Desde o início nós sabemos que Sara não é uma vilã, ela não se motiva assim, mas sua hipócrita e conduta moralista é antagônica à personalidade de Verônica; e grande parte dos acontecimentos se dão por consequência disso, e ela sabe disso quando descobre que foi manipulada. O conflito não dura apenas alguns capítulos, podemos perceber que Sara está completamente arrependida e por mais que peça desculpas e seja então desculpada essa sensação não passa, ela precisa se desculpar constantemente pois sente o peso da culpa. Mas esta culpa não a impede de sentir mal e também compadecida quando Virgínia fica tetraplégica. Apesar de ter seus motivos para desejar que ela desapareça ela ainda tem a sua humanidade. É tudo muito conflituoso nesse sentimento. Não é como se ela esquecesse disso alguns capítulos depois. Percebe-se que essa é uma outra tentativa de deixar a história mais realista.

a mentira tem perna curta

Mas esta não; acredita? É impressionante o legado que A Mentira deixou, não só apenas pela sua trama que rendeu diversos remakes, mas também na sua criatividade visual. As novelas para o horário das 17h geralmente recebiam orçamentos menores, por isso contavam com uma produção mais reduzida. No entanto, Sotomayor não se declarou vencido. Sabendo que não teria cenários tão surpreendentes ele decidiu trabalhar com a sua câmera e entra aqui uma das telenovelas mexicanas que mais trabalhou com a fotografia e seus recursos, explorando muitas alternativas possíveis que deram uma característica própria à obra. 

Sotomayor utiliza muito do zoom pra decorar a fotografia. Podemos vê-lo usar aquele zoom de close, muito característico no cinema nos anos 70. Outro recurso foi o dolly zoom (famoso efeito vertigo) usado por um par de vezes em diversas situações. Teve uma hora que parecia que a cama de Verônica estava sendo puxada, deu uma vertigem (haha). Entre estas técnicas de filmagem, as que mais chamam atenção com certeza são as de perspectiva. Algumas vezes a câmera toma o olhar de algum personagem, às vezes ela se movimenta com ele dando uma sensação atmosférica, como se nós estivéssemos lá ou mesmo quando ela está filmando de baixo para cima ou de cima para baixo, por entre portas ou curvas. Hora ou outra a câmera caminha em volta dos personagens circulando-os, faz planos de corte único. Recursos de composição de imagem também são usados. Percebemos influências dos filmes noir, com persianas refletindo nos personagens, imagens contra luz e silhuetas e muita sombra em determinados momentos.

Quando se trata de telenovelas (e eu falo das latinas num geral) ousar na fotografia parece algo arriscado e que pode afastar o público, mas se feito de maneira correta trás o dinamismo necessário. Nas tramas brasileiras atuais temos visto muitos esforços pra tentar trazer algo diferente (seja uma câmera que acompanha os movimentos dos personagens em Avenida Brasil, sejam os ângulos rebuscados de Verdades Secretas ou na poesia dos cenários encantadores de Velho Chico e Meu Pedacinho de Chão), tornou-se quase um pouco comum para as tramas televisivas por aqui apostarem em recursos que geralmente são usados no cinema, mas ainda hoje, no restante da América Latina, encontramos uma certa resistência e mesmo que eles já tenham algumas tramas mais ousadas, como as narconovelas, a câmera ainda é contida, estática e preguiçosa e quando tenta algo diferente se vale de closes ou relances dos blockbusters hollywodianos. É realmente interessante que A Mentira tenha se amparado à fotografia para disfarçar seu baixo orçamento, mas isso acabou criando uma corajosa ambição que a fez sair à frente de suas irmãs de época. 

A verdade saindo nua do poço

Apesar de muito interessante o enredo teve uma barriga a partir da segunda metade, que dura do capítulo 60 ao 85. São quase 20 capítulos tentando se sustentar nas tramas paralelas que embora tenham sua importância, como o plot de  Karla e Pêpe com as drogas e seu final trágico, mas isso não é o suficiente. Carlos Sotomayor aproveitou a audiência pra esticar a trama até o capítulo 100, mas não teve criatividade suficiente pra movimentar a trama principal, que na verdade é o ponto alto dessa novela. Durante este período nada de realmente relevante acontece com Verônica e Demétrio, com algum esforço uma personagem aleatória surge na trama pra tentar atrapalhar o romance, mas ela simplesmente consegue fazer o plot entrar num marasmo ainda maior e ficou claro que este era apenas um recurso de esticamento. Além disso, desta barriga em diante, a trama ganha um ar mais folhetinesco e menos ousado, na questão fotográfica talvez pra segurar o público, que estava totalmente vidrado a esta altura  do campeonato. De bom é que nessa fase quem realmente movimenta a trama com todo fôlego é Virgínia, que com suas tramas e pilantragens consegue colocar algum tempero nesta barriga. Apesar disso, nos capítulos posteriores o folego é recuperado, mas Virgínia continua sendo o destaque. E isso é curioso, pois se na primeira metade a vilania de Demétrio é quem toma rumo deixando-a como uma coadjuvante; na segunda metade, porém, ela recupera seu lugar e se torna uma vilã digna para trama que explora com vontade o cinismo e ingenuidade que e  personagem consegue transmitir, graças à interpretação louvavel de Karla Álvarez.


meia verdade é sempre uma mentira inteira...

Longe de ser uma das favoritas do público, embora o casal protagônico figure muitas listas dos top 10 melhores casais de novelas, a Mentira se consolidou como uma verdade. Seu sucesso não está pautado apenas nos seus altos índices de audiência (com 28,7 quando a média era 17 pontos; um fenômeno popular), mas também se valida através do seu legado. Sua coragem em apresentar protagonistas com motivações dúbias (seja o complexado anti-herói Demétrio ou a nada convencional mocinha Verônica), em apostar numa fotografia corajosa e sua despretensão para o óbvio ajudam a firmar seu nome no hall da fama das grandes novelas clássicas mexicanas e talvez uma das mais vanguardistas no contexto que lhe cabe. Dizem que a mentira corre mais rápido que a verdade e eu devo concordar que lá em 1998 A Mentira já estava bem à frente do seu tempo. Diferenciando-se das novelas rosas por total, apresentando conceitos, jeitos e formas que apenas viriam a ser explorados anos mais tardes nas telenovelas; consolidou-se como um clássico memorável, relevante e influente. Seus seis prêmios  no TV Novelas (maior premiação de telenovelas no México) e sua indicação ao Emmy Latino comprovam isso. Lançada em 1998 segue influenciando de maneira absurda o meio novelístico e talvez por isso eu deva dizer que pelo menos esta mentira tem perna longa.

Arte

ozu e a sensibilidade da rotina

17:56

 

Ah, o cinema "ozuniano" !

Com toda certeza, Ozu foi um dos diretores de cinema mais influentes da história, falo isso com tranquilidade. Não precisamos ir muito longe pra perceber isso, ora pois, a aconchegante contemplação do vazio nas animações do Studio Ghibli ou a delicadeza cotidiana das novelas Manoel Carlos, do oriente ao ocidente encontrar fascínio nas cenas do dia a dia se tornou uma realidade, mas ninguém conseguiu transmitir isso com tanta leveza e poesia quanto ele, o mestre do cinema contemplativo, Ozu.

Pai e Filha, Também Fomos Felizes, Era uma vez em Tokyo, Flor de Equinócio, O Fim Do Outono... Nossa, são tantos títulos impressionantes que eu poderia fazer um post apenas listando todas as suas obras primas, mas hoje eu vim falar de uma delas em específico: o longa de 1962, A Rotina Tem Seu Encanto.

Este foi o último trabalho do diretor que veio a falecer apenas um ano depois em decorrência de um câncer. O filme tornou-se um belíssimo retrato da velhice, da solidão e da função da família. Às vezes é preciso viver toda uma vida pra encontrar alguma beleza na cansativa habituação dos costumes cotidianos e foi isso que Ozu nos trouxe em seu último suspiro de vida. Embora seus filmes já tivessem um sensível olhar sobre o cotidiano, nenhum deles deixou tão claro como era tão exaustivo, mas também tão belo estarmos vivos. É uma perspectiva até otimista demais pra tempos como este, mas uma vez que você conseguir ver por esta lente talvez tudo tenha um novo sentido.

se acostumar a uma nova rotina é bem difícil

Como de costume nas obras de Ozu, temos um casamento arranjado como pano de fundo pra trama - todavia bem diferente das suas tramas anteriores não tem no casamento. Não é o seu foco, mas sim, apenas, seu catalisador. É a partir do momento em que Shūhei Hirayama (Chishū Ryū), pai já de certa idade, percebe que Michiko (Shima Iwashita), sua filha de 24 anos, talvez esteja sacrificando seu futuro para cuidar dele, que o protagonista começa a não só perceber que precisa “soltá-la” para o mundo, como também o quanto ele já está idoso. O sentimento é, lógico, conflitante. Sem a filha, Hirayama perde sua companhia, apesar de ter ainda outro filho vivendo sobre seu teto, além de um casado. 

Na cultura patriarcal japonesa dos anos 60, a mulher é essencialmente do lar, já que vive sua vida primeiro para seus pais e, depois, para seu marido, mas esse não é o ponto que Ozu deseja discutir. Como disse, o casamento ou melhor, a possibilidade de casamento, é, apenas, o mecanismo utilizado para sacudir o status quo e permitir a contemplação da finitude, da velhice, da solidão e, sim, também da felicidade. No meio disso, Hirayama tem ocasionais reuniões com seus amigos de escola onde eles bebem e seguem um mesmo ritual todas as vezes. Fazendo as mesmas piadas, debatendo os mesmo temas, relembrando as mesmas histórias. Em uma dessas reuniões, porém, Sakuma (Eijirō Tōno), envelhecido e empobrecido professor de literatura deles, aceita o convite para jantar e, durante a cerimônia, Hirayama descobre que ele ainda vive com sua filha Tomoko (Haruko Sugimura) que há muito “passou da idade” para casar, revelando-lhe um possível futuro indesejável para sua própria filha Michiko.

É como se Hirayama acordasse de um torpor. O torpor causado pela comodidade, pela rotina, pelo uso repetido do caminho mais viajado. Sua vida é confortável em casa, com sua filha constantemente dando-lhe atenção, como o preparo do jantar, o aquecimento da água do banho e a lavagem de suas roupas. Mas ele percebe que isso é ele sendo pequeno, mesquinho e não pensando no futuro que está roubado de Michiko. Claro que estamos falando de uma obra de Ozu e isso não vem com realizações expositivas nem com reações exageradas. Muito ao contrário, Chishū Ryū é um caldeirão de emoções que, porém, ele sabe como ninguém esconder, revelando aqui e ali, discretamente, com olhares, com flexão de voz e com o uso de um artifício narrativo importante para Ozu: a bebida. O sake e a cerveja são quase onipresentes na filmografia do diretor, que foi sempre pessoalmente muito afeito ao álcool e, em A Rotina Tem Seu Encanto isso é particularmente relevante já que o protagonista efetiva, mas discretamente, foge para a garrafa de maneira a afogar o que percebe de sua vida. Acontece que, assim como o casamento arranjado não é tema do filme, o alcoolismo também não é. Ele é apresentado como parte da vida, com parte de comemorações, como mais um elemento que compõe o cenário.

Hirayama estava negando começar um novo momento em sua vida. Exaurido de uma nova tentativa de adaptação, ele prendia Michiko junto a ele de alguma forma. É até fácil entender o seu medo. Ele estava completamente agarrado a ideia de conformação. É assim que a rotina se comporta e quando dela tentamos fugir é como se estivéssemos entrando em um novo país onde não conhecemos exatamente nada e isso cobra um longo processo de familiarização. Pode parecer que Hirayama era apenas alguém com medo de pegar um trilho sozinho, mas sempre há uma história por de trás de tudo e Ozu quer justamente que vejamos isso.



a rotina terá seu encanto

Desde a revolução industrial somos inseridos num modelo muito mais cansativo de rotina. Estamos condicionados a nos entregar de uma maneira quase inconsciente a isso, sem nenhum questionamento. Se não o ócio, a rotina.

Em dado momento do filme podemos absorver toda a tristeza de Tomoko. Dada como uma fracassada, ao qual só lhe restou um caminho: cuidar do pai bebum. Tomoko simplesmente não aguenta mais toda aquela mesma coisa de sempre. Esgotada, sentindo-se humilhada e como lhe tivesse restado apenas o mais do mesmo, ela se desaba em um choro tão inconformado que chega doer de assistir. Não podemos fazer nada por ela e nem mesmo ela sente que pode fazer algo por si. Por alguns segundos vemos todo o seu sentimento de injúria ser vulneravelmente exposto. As portas do seu estabelecimento estão abertas e a tv está ligada. Tomoko estava tão aborrecida que não se importou com aquela exposição tão sentimental. Para os costumes de socialização dos japoneses expor-se assim chega a ser vergonhoso e até mesmo constrangedor, mas Tomoko estava tão fadigada de tudo isso que ela se quer se importou. Seu choro é interrompido pelo pai que pede auxílio para banhar-se, mostrando como nem mesmo tempo pros seus complexos ela parece ter. Depois disso, ainda temos uma última conversa entre pai e filha. Ela relembra momentos de alegria saudosos de outrora. Pelo seu olhar eles parecem distantes, mas ainda há uma coisa no seu semblante que nos mostra uma esperança, ainda que mais fria, de dias melhores. No meio das lembranças sorrisos entre os dois e percebemos então que embora extremamente dura, a rotina tem seu encanto. E é verdade que o homem sempre precisou trabalhar e dormir e no dia seguinte se repete o anterior. Mas, no final não é como se estivéssemos vivendo num looping, pois cada dia tem um novo rumo e mesmo que os dias dependam do que se passou para existirem, eles ainda funcionam individualmente. Prova disso é a famosa frase: "amanha será outro dia" e dia após dia coletamos novas lembranças, contamos novas histórias , tiramos novas fotografias, gravamos e assistimos novos filmes, ouvimos novas músicas, lemos novos livros, cultivamos novas flores, absorvemos novas paisagens.

epílogo: também fomos felizes

Viver às vezes parece cansativo; precisamos de escapes. Temos nossos compromissos, nossas obrigações e responsabilidades. É quase um sonho tentar viver em total despreocupação em boemia, sem razão de ser. No final daquele cansativo dia quente, sabendo que temos que fazer o mesmo no dia seguinte esteja ele quente ou não, tomamos um banho descansando as costas e nos entregamos ao sono. Tenho que trabalhar pra comer, comer pra sobreviver e sendo assim sobreviver pra tentar em algum momento apenas viver. Quem tem que pagar aluguel precisa de se preocupar com morar, a mãe tem que se preocupar em garantir a vida da sua cria e as crianças tem de se preocupar com construir um futuro. A rotina cansa, ela não dá tempo. Poucos os momentos em que paramos pra refletir e entender o mundo industrializado que vivemos. Globalizamos, mas a ida a Paris é irreal para 70% das pessoas no nosso país, elas estão ocupadas demais tentando manter-se vivas pelo menos até o dia seguinte. O amanhã é incerto, coisa de futuro. Entretanto, além da morte, se vivos permanecemos, de uma coisa temos certeza, seja cá ou lá, o amanhã será, se não a mesma, uma nova rotina e assim segue a humanidade: presa em seu movimento circular entre o nascente e o poente. 

Nem tudo porém, é desprazer. Todo domingo tinha macarronada na casa da vovó e nas sextas íamos dar um volta pelo lago. A rotina pode até ressignificar estes momentos, dando um ar cotidiano pra eles, mas ele continuam tendo suas significações próprias. É importante não deixar a rotina transformar isso em regra ou obrigação também. Mesmo que eu tenha que acordar todos os dias pra tentar sobreviver, eu ainda sei que durante esse tempo eu terei momentos genuínos de felicidade, afeto e companheirismo e é disso que Ozu está falando em a Rotina Tem Seu Encanto. Seus personagens ou estão acomodados com a rotina, ou saturados demais pra tentar algo novo, mas eles ainda tem seus sinceros momentos de vida e em meio a um mundo que caminho para o desgaste emocional e físico é importante ter a consciência da capacidade de não apenas coexistir. Estamos desengrenados e não temos certeza de onde vamos chegar, mas ainda somos humanos e não máquinas. O sol ainda floresce todas as manhãs e apesar das dores, dos desencontros, das ilusões, dos fracassos, dos momentos de solidão, das dúvidas e do choro, também fomos felizes.

Animações

estúdio ghibli e a contemplação do vazio

15:15

    

   

Eu consigo me lembrar da primeira vez que eu vi um filme do Estúdio Ghibli. Eu tinha uns dez anos e minha mãe havia alugado na locadora mais badalada da cidade "A Viagem de Chihiro". Sinceramente eu não sabia nada sobre aquela animação. Eu nunca havia visto em nenhum trailer, em nenhum cartaz ou Imagem pela internet. Mas quando o filme acabou e tudo que restou foi o silêncio, eu estava completamente maravilhado. Eu nunca havia visto nada parecido. Aqueles cenários cheios de detalhes e aquele traço fino quase que como uma pintura impressionista. Eu não me lembro de ter dado um pio durante todo o filme; estava hipnotizado por aquele universo diferente e aconchegante. Eu sempre fui um amistoso por fantasia. Eu amava história de dragões gigantescos, seres fantásticos lutando e outros místicos produzindo luzes mágicas, mas o que eu estava vendo ali era um tipo diferente de fantasia que eu não sabia simplesmente explicar.

 Os anos passaram e felizmente eu pude ter outros contatos com obras do Hayao Miyazaki (um dos criadores e também diretor do estúdio). E mesmo depois de tantos anos, várias vezes regressando pra esses filmes eu ainda não entedia o que me fazia ter aquela mesma sensação inexplicável quando eles acabavam. Por que aquela sensação? 


movimento gratuito entrando em cena, tomada um...

Roger Ebert, durante uma entrevista com Miyazaki, elogiou um dos aspectos mais fascinantes da sua capacidade enquanto diretor. Ele disse que adorava o "movimento gratuito" do cineasta. Isto é, como às vezes parece que os filmes dele simplesmente dão uma pausa na trama e nos mostram momentos onde não acontece nada de especial. 

Ebert disse:  "Em vez de todo momento ser ditado pela história, às vezes os personagens vão apenas sentar por um momento, ou vão suspirar, ou olhar um córrego, ou fazer algo extra. Não pra avançar a história, mas apenas pra dar uma sensação de tempo, de espaço e de quem eles são" 

É curioso, porque toda vez que eu leio esta fala dele eu me lembro do mesmo trecho de "A Viagem de Chihiro" onde Chihiro e sem rosto fazem uma viagem de trem. Durante todo o percurso nada realmente acontece. A gente os assiste cabisbaixos no vagão enquanto os passageiros vão aos poucos decendo em suas respectivas paradas. Não tem diálogo, não tem ação, apenas os dois observando a paisagem passando borrada pela janela meio embaciada. E isso é tão verdadeiro que quando eu me lembro disso eu me lembro simplesmente dos meus momentos de viagem e é exatamente assim que acontece. Eu fico em silêncio observando a paisagem até talvez cair no sono. 

Como resposta pra Ebert, Miyazaki respondeu: "A gente tem uma palavra pra isso em japonês. É chamada de MA (vazio). Isso está ali intencionalmente"

Então eu finalmente entendi que sensação era aquela que me invadia todas as vezes. 

Ma 

Esse conceito é muito antigo na cultura japonesa e parece estar com eles desde sua formação social. Ma é uma das leituras do ideograma 間, representado pelo sol (日) no meio de um portal (門). De uma forma simples e objetiva, Ma pode ser entendido como intervalo de tempo ou espaço entre dois elementos. Isso nos ajuda a entender o contexto de uma maneira melhorada. 

Ma não é um vazio qualquer. É um vazio que tem seu propósito. Importa e tem significado. Significado que se expressa na ausência de algo. Uma porta aberta é um espaço vazio, um vão. Mas é a partir deste vazio que podemos observar o sol brilhando radiantemente belo lá fora. Logo, Ma é uma ausência que permite que algo se manifeste através dela. 

Os filmes do Studio Ghibli são repletos de ação e movimento, isso não tem como negar, mas a questão é que estas histórias tem um senso de equilíbrio muito grande. Isso significa que nós vamos nos deparar com momentos em que os personagens precisam respirar. Momentos de pura contemplação. Isso me lembra das vezes em que eu ia na casa da minha tia, no campo, e depois de brincar ferozmente com meus primos eu simplesmente sentava de frente à represa e ficava observando a Vitória Régia, ou quando eu vou dar uma volta pelo lago e paro pra observar o poente esmorecido no horizonte, ou mesmo quando eu olho pra cima e percebo os detalhes da copa de uma árvore, a luz entrando por entre os galhos redimida e o vento fazendo as folhas dançarem suavemente.


é importante valorizar as pausas...

Todas às vezes que meus primos e eu nos desentendíamos eu preferia simplesmente caminhar por aí pela estada vendo a plantação de girassóis ou talvez subir em cima de uma árvore de Manga do que fingir que nada disso tinha acontecido. Eu simplesmente ficava observando a vista sumindo lá na frente. Eu conseguia pensar no porquê do desentendimento e depois essa reflexão se misturava com a observação que por sua vez se perdia compenetrada no vazio e então eu me esquecia de tudo e mais tarde nós estávamos juntos novamente. 

É importante ter um tempo pra parar. Tempo de respirar. É necessário absorver e o mais importante: prestar atenção nos simples detalhes da vida. Isso parece coisa de vovó, mas pra quem não tem pressa pra viver ver a flores e a grama sendo levada pelo vento é uma dádiva. Sentar por aí e observar o mundo entendendo-se como ser vivente deste lugar. 

medo do silêncio...

Ainda na mesma entrevista Miyazaki diz: "As pessoas que fazem filmes têm medo do silêncio. [...] Elas ficam preocupadas que o público vai se entediar. Que eles vão se levantar e ir comprar pipoca. Mas só porque o filme é 80% intenso o tempo todo, isso não significa que as crianças vão te abençoar com a concentração delas. O que realmente importa são as emoções subjacentes - você não deve abandoná-las." 

É através destes momentos de vazio que os mundos criados por Miyazaki se manifestam com mais intensidade tal como a luz do sol que passa pelo vão da porta. A intensidade aqui está nas visceralidade da ação, mas também está na delicadeza do tempo. O silêncio pode parecer incomodar e muitas pessoas fogem da reflexão que ele está disposto a nos proporcionar, todavia, o silêncio é agradável e acolhedor. Ele traz alento e nos envolve em seus braços ternos, quase que nos dizendo: você pode pensar agora. E então nos sentimos confortáveis o suficiente pra aproveitar a nossa própria companhia. Estar sozinho não é ser sozinho. O humano precisa destes momentos de intimidade pra se encontrar e refletir seus caminhos. Acontece é que tem muita gente que tem medo disso. Tem medo de ser perder no caminho e se entediar. Mas esse medo não existe nas obras do Miyazaki.

"a reminiscência de som que antecede o silêncio”. 

Esta foi a maior das razões pela qual eu me tornei tão fascinado pelo cinema do Estúdio Ghibli. Por muito tempo eu não sabia entender, mas eu estava num sentimento intenso de imersão. Não somente pelos gráficos cheios de aconchego ou pelos elementos fantásticos do filme, mas também porque o Miyazaki permitiu que o mundo criado por ele se construísse na minha frente como um ritmo e com um propósito. Foi possível viver as aventuras de Chihiro, mas eu também contemplei o mundo ao redor. Ela parou e eu parei com ela. Todas às vezes foi a mesma coisa, o castelo animado caminhando lentamente pelas montanhas; o Porco Rosso voando no avião por entre as nuvens entardecidas; O Totoro e a Satsuke esperando um ônibus na chuva. 

o observador está observando...

Com sua animação sutil Miyazaki foi capaz de observar através das janelas os movimentos delicados e discretos dos estados humanos. É na sutileza, nos detalhes e na minúcia que ele se diferencia de que existe na animação japonesa. Se você parar pra pensar vai perceber quê os animes comunicam emoções através dos exageros e da exuberância visual. 

Hayao parece não gostar da falta de tato que a animação japonesa tomou nos últimos anos. 

Ele disse: "Quase toda a animação japonesa é produzida sem nenhuma observação de pessoas reais. É uma arte produzida por humanos que não gostam de olhar para outros humanos. E é por isso que esta indústria está cheia de otakus."

Miyazaki é fã do piloto e escritor francês Saint-Exupéry, que escreveu livros como O Pequeno Príncipe e Vento, Areia e Estrelas, este sendo um dos livros preferidos dele. No final dos anos 90 o diretor fez uma longa viagem - toda documentada - pela Europa e o Norte da África. Neste percurso ele visitou diversos lugares que eram familiares ao Exupéry. Ele não fez essa viagem só porque estava interessado na história do seu ídolo. Ele não se contentava em apenas ver o que Exupéry viu, ele queria ver como Exupéry viu. Por isso ele achou importante subir em um avião antigo e observar as coisas lá de cima. Tendo a mesma perspectiva. 

Pra ela a observação é um exercício que precede a criação. Por que é a observação da humanidade que garante que a arte mantenha algum vínculo com a realidade. É possível ver isso nos universos do Miyazaki. Eles são cheios de imaginação e fantasia, visuais impressionantes e mágicos, mas eles também estão cheios de humanidade. E foi nesta contemplação que ele se propôs a ter durante a viagem que nasceu Vidas ao Vento

Miyazaki é então um observador nato. Ele considera importante olhar as coisas ao redor. Esse método criativo explica a diferença entre o seu trabalho e o trabalho do outro pessoal que está na indústria. Essa sutileza está na maneira dos personagens, no texto e no argumento. 

Se ele não fosse tão observador, talvez ele não teria conseguindo entender a importância que o vazio tem e como nós precisamos senti-lo. 

Arte

porque underneath the stars da Mariah Carey é tão sublime

13:05


Mariah é um excelente compositora. Sua carreira está recheada de poesias líricas, lúdicas e cheias de elementos formidáveis. Ela tem usado palavras igualmente fantasiosas e mágicas pra fazer o seu som todos estes anos. Mas, durante o período de criação entre 1994 e 1996 ela estava especialmente agradável. (Este é um post sobre Underneth The Stars, mas poderia ser sobre Everything Fadas Away, Melt Away, So Far (Sllipin' Away), Long Ago, Dreamlover...). Tudo neste momento estava tão doce e leve na sua mente criativa. É verdade que Mariah sempre gostou de uma sonoridade mais melódica, quase como uma coisa de fada, que pende entre Minnie Ripperton e Enya, mas Underneath The Stars, que é o maior exemplo disso, parece ter transcendido a realidade melódica e harmônica e agora paira num sublime estado de beleza sonora. 



...parece que eu estou flutuando com ela

Numa noite de verão ela fugiu por aí sei lá com quem e de baixo das estrelas eles flutuaram para outro estado da mente. Essa composição é tão sublime. Mariah parece ter vivido um de seus dias mais inesquecíveis nessa faixa (que é continuada pela também ótima Fourth Of July) e toda aquela sensação de felicidade e leveza, como se pudesse voar nos é passada com tanta delicadeza. 
No final de cada refrão, Mimi canta quase que como uma flauta "...young luv" e é exatamente isso que sentimos. Uma nostalgia  juvenil de um amor de verão antigo da época de escola. Uma daquelas lembranças inesquecíveis de uma tarde primaveril em que passeamos por aí coletando memórias encantadoras e depois mantemos isso com carinho pra sempre no coração. 

Eu fico chapado de Underneath The Stars todas as vezes que eu a escuto. É como se eu estivesse neste mesmo campo em que ela diz ser cheio de borboletas e vagalumes que na euforia da paixão sobrevoam sobre eles. É como se eu estivesse me deliciando desta mesma fantasia. Entre uma pintura de Monet e Fragonard, pixelando esta deleitosa paisagem sonora, ilusionado pelos êufonos encantos das bolinhas brilhantes que pairam no céu escuro. São imagens saudosas, capturas cativantes, sonhos graciosos.

Sweet, sweet fantasy baby...

A beleza poética deste momento sonoro não está apenas no lirismo da faixa, mas também nos vocais aveludados da Mariah que fluem como um prólogo dos cantos angelicais descritos por Ezequiel. Ela canta todos os versos tão suavemente e com tanta maciez que eu sinto sua voz acariciando meus ouvidos. Arranjos vocais que mais lembram arranjos florais. Um buquê de harmonias diversas e contagiantes. As melismas são brincalhonas, ela saltam entre notas e outras e não soam como firulas exageradas graças à agilidade vocal de Mariah, que coloca cada nota em seu devido lugar. É admirável a forma como ela transita entre um registro e outro, especialmente entre o falsete e a voz de cabeça, mas com toda certeza a parte mais fascinante, vocalmente falando, desta obra de arte são os whistles (registro de apito). Essa é a marca da Mariah. Ninguém dominou este registo com tanta propriedade, mas aqui ele não é o protagonista da faixa como em Emotions ou um prelúdio como em Dreamlover, muito menos um clímax como em Someday. Mariah sabiamente usa o registro como um adorno, um adereço poético. Os whistles estão floreando a faixa, em reverb, e você pode escutá-los ao fundo ressoando pelo céu estrelado. Eles chegam aos nossos ouvidos como estrelas cadentes, como arabescos singelos. Ela nunca soou tanto como um pássaro igual ela soa aqui. E como se tudo isso não fosse suficiente, a produção se encarrega de trazer um ambiente igualmente místico. Com batidas brandas de um baixo que nos levam pra um disco de fim de noite dos anos 70's e os glissandos do e-piano afáveis em camadas sobrepostos às vocalizes da cantora criam uma ambientação única. Você pode sentir a cada acorde e se  deliciar com as notas sussurrando gentilmente no seu ouvido os devaneios de Mariah. Toda a poética deste dia está na letra que nos transportam para o além da imaginação, nos vocais que nos tocam os ouvidos como plumas, nos instrumentos que valsam tímidos com os vocais e nas sensações que desabrocham na superfície da pele e florescem dentro de nós. 



 uma escapatória para outros escapismos 

Quando Mariah estava produzindo Daydream seu casamento já estava fracassado e ela se sentia constantemente abusada pelas restrições do marido, Tommy Motolla que na época era presidente da Sony Music. Mariah queria flertar mais vezes com o R&B e o hip hop, mas seu marido achava que isso diminuiria a capacidade de Mariah, que era simplesmente a maior estrela do momento. Ela tinha vendas, aclamação e hits. Arriscado demais tentar deixar o pop e o soul. Mas, Mariah estava determinada. 

Como uma verdadeira artista ela queria ter sua liberdade criativa e este foi o início do sentimento de liberdade que ela viria poetizar no seu próximo álbum, Butterfly. Mas enquanto Mimi não podia se separar totalmente, graças aos acordos e contratos, ao invés de cantar sobre suas dores e desafetos, ela criou um mundo de devaneios onde poderia fugir todas as vezes e esquecer toda a pressão e repressão que estava vivendo; não atoa o álbum se chama Daydream, que quer dizer devaneio (como estar sonhando acordado, imaginando coisas...). Perdendo-se em lembranças de uma época onde as cores eram mais tênues e as flores não tinham tantos espinhos, entre uma faixa e outra conseguimos absorver uma desejo inocente de escapar daquela tensão. Como uma "ponte para Terabítia" neste escape ela cria suas próprias convicções, desejos e fantasias. Figuras de outrora, romances da adolescência, papéis de carta vintage e cenários cheios do típico boculismo sulista dos Estados Unidos, de onde Mariah é moribunda. Neste excelente amontoado de faixas, Underneath The Stars é a que mais reflete este mundinho ingênuo e sonhador. É nesta canção que nós conseguimos sentir puramente a necessidade que ela tinha de fugir. 

Quando o álbum se encerra com a tristonha "Lookin' In" propondo uma reflexão pessoal sobre uma Mariah embotada de lágrimas e talvez desencantada podemos perceber o quanto estes devaneios foram importantes pra manter Mariah viva e saudável mentalmente. 

uma poesia polida...

Underneath The Stars não envelheceu. Ela poderia ser tão atual como "Say So", da Doja Cat. Podemos ver seu legado em cada nova música da Ariana Grande. Sua característica doce e jovial evoca paixões e inspira muitos jovens artistas no mundo musical.  Não sei se Mariah tinha noção da dimensão desta música quando a estava criando, mas ela nasce de uma genuína vontade de colorir os dias nublados, de manter fotografados os bons momentos independente da sensação que eles trazem, de uma expressão que precisava existir. Enquanto a catarse proposta no Butterfly não chegava, Mariah se munia de quimeras ludibriadas e com elas fazia arte. Não seria um eufemismo dizer que esta música é fantástica, uma obra de fantasia.

Enveludada num fabuloso enlevo Underneath The Stars é um júbilo cálido quase que celestial, um regozijo necessário, uma viagem pra um conto de Neil Gaiman, é um suspiro de alívio, é uma satisfação maravilhosa, é a poesia polida.





Novelas

a usurpadora, um dramalhão refinado

18:52



Tem algo diferente em A Usurpadora que o tempo se encarregou de mostrar. Com aquela trilha sonora lounge jazzística e clima de anos 90, esta novela estava totalmente destoada de suas contemporâneas, à frente e particularmente mais degustante do que suas irmãs de época. Há uma sedução instigadora no clima dessa trama. Não está somente no ar ou na ambientação. Está no texto, no argumento e nas características que os personagens possuem. Assistir A Usurpadora pela sexta vez me fez perceber o quão interessante é a realidade desta novela. Eu posso ouvir a melodia dessa trama, algo como Smooth Operator, da Sade, que inclusive daria uma ótima música pra trilha sonora. 

Quando eu digo que o tempo se encarregou de mostrar o valor desta novela, eu estou dizendo que seu sucessos não é superestimado. A novela simplesmente não ficou datada ou parece estar perdida no tempo. Embora evoque uma nostalgia provinciana e típica noventista o roteiro vai além disso pois permanece atual mesmo que sua história principal seja a mesma clichê de sempre da troca dos irmãos gêmeos. Céus! E como existe isso nas novelas, mas parece que nenhuma delas conseguiu levar isso pro mesmo patamar que A Usurpadora conseguiu. 



uma mocinha não tão mexicana assim...

Quem acompanha a teledramaturgia mexicana, ou pelo menos se esbarrou alga vez na vida com os títulos mais famosos, pôde perceber que parece haver uma regra onde a protagonista deve ser totalmente frágil e ingênua, boba o suficiente pra cair nas tramas da vilã, assim como desajeitada o suficiente pra se encaixar num universo que não a pertence. Maria Mercedes, Maria do Bairro, Marimar, Maria Isabel, Esmeralda, O Privilégio de Amar, Rosa Selvagem, A Madrasta... São muitos títulos com o mesmo arquétipo servindo de protagonista, quase todos aliás. Embora Paulina seja cheia de bondade e esteja sempre disposta a ajudar, ela não se resume a isso. Na verdade Paulina tem duas características primordiais que faltam à Paola: Ambição e Inteligência. Paulina é o mais puro exemplo de uma pessoa determinada. Quando ela chega na casa dos Brachos seu principal desejo é recuperar a dignidade daquela família disfuncional. Primeiro ela tira a Vovó Piedade do vício porque sabe que com ela terá apoio para seus futuro projetos na empresa, depois ela tenta dar uma ajuda mínima para Angélica que está com sua autoestima extremamente prejudicada e por fim, depois, ela recupera a fábrica criando um revival financeiro nos negócios da família. Tudo isso poderia ser interpretado como: "Paulina tem um coração tão bom", mas uma fala em específico da própria mocinha parece mudar completamente toda a dinâmica das suas ações. Quando a outra liga pra avisar que está voltando pra sua vida Paulina pensa: "Ela vai estragar tudo que fiz. Todo o meu esforço terá sido em vão?" Essa preocupação inicial nos mostra que a mulher simplesmente estava encarando isso como um projeto pra sua realização pessoal, um desafio. Em seguida vem uma reflexão sobre sua dedicação ter sido vã, logo seria um tempo perdido com nada. 

Paulina se sente realizada com seu poder e sucesso na empresa. Quando ela ganha a Vovó Piedade ela simplesmente tem o aval pra fazer o que quiser com os negócios da família. E assim ela faz, mostrando ter muito mais capacidade e visão empreendedora que todos os Brachos. Mas com certeza seu maior acerto, além de ter ganhando o coração das crianças, foi se entregar quando percebeu que o cerco estava fechando pra ela. Além de saber que sua pena poderia ser diminuída se caso fosse condenada, esperta ela também se pôs no papel de mártir. Assumindo a barra toda ela sabia muito bem que ganharia pontos com Carlos Daniel e Rodrigo e consequentemente eles iriam depor em seu favor.

Paulina foi uma excelente manipuladora e demonstrou uma eficácia maior nessa arte do que sua irmã descompensada. Talvez seu maior erro tenha sido sua tentativa de ganhar Angélica, que mesmo depois de tudo continuou renegando uma aliança (ou apoio) à usurpadora. A verdade é que Paulina não deu um passo falso nessa situação toda e manter-se imaculada perante Carlos Daniel foi o essencial pra entender a sua posição e se afirmar dentro do jogo. Pra uma pessoa que cresceu beira mar sem ter a oportunidade de fazer uma graduação no ramo dos negócios, ela se mostrava uma pessoa com muita visão de mercado.



ela nem era tão malvada assim e isso que era legal

Talvez a coisa mais perversa que Paola tenha pensado em fazer foi quando ela disse que comeria a língua da Elvira ou quem sabe quando disse que mataria Lalinha, mas ela era apenas uma mulher debochada e cínica. Paola não tinha intenção de matar ou ferir ninguém, afinal, tudo que ela queria era poder se divertir e curtir a vida como uma descompensada. Penso em quantos sugar daddys ela teve na sua adolescência. É sério, eu me pergunto isso. Sabemos tão pouco da vida de Paola e ela faz questão de esconder tudo mesmo, mas de uma maneira sutil, de uma forma que o publico se quer chega a perceber. Paola tinha seus complexos. Aposto que não conhecer sua verdadeira mãe era um deles e provavelmente se sentia mal por sua família adotiva não se importar com ela. Isso fica evidente nos capítulos finais e percebemos o quão desesperada e sozinha ela está. Cheia de inseguranças e desajustes ela tenta prejudicar a própria família de seu marido pedindo 1 MILHÃO DE DÓLARES pra deixá-los em paz. 

Paola é uma figura sombria, apesar de toda sua carisma e sorriso simpaticamente sensual. O próprio diretor deixa isso claro ao manter a novela por meses sem uma aparição dela e quando aparecia era por telefone. O vilão eram os conflitos e a tensão constante que Paulina sentia ao imaginar que poderia ser descoberta. Toda essa mítica por de trás de Paola é alimentada pela própria direção que tornava-a em um fantasma. Como uma sombra flertando com a escuridão e assim às vezes desaparecia no breu, mas você sabe que ela está ali. Bom o que sabemos sobre Paola no final de tudo? Quase nada, mas é possível tirar uma conclusão. 

Inconstante. Paola era inconstante e pouco inteligente. Várias vezes ela teve a oportunidade de ter todo o dinheiro que almejava ter em mãos, mas ela simplesmente deixava isso escapar sempre e sempre. Percebe-se então que não era apenas pelo dinheiro. O dinheiro era só um meio. Ela não conseguia fixar seus pés no chão, ter um lar ou morada. Alma livre, mas também perturbada. Paola fugia todas as vezes dos seus complexos porque não tinha maturidade ou força suficiente para encará-los. Sempre que estava fixa em uma nova ideia ela começava a ter sonhos, manias e desajeitos e então queria pular pra uma nova aventura sem se preocupar como deixou a anterior. É um vazio constante e uma vontade de suprir isso com fantasias e futilidades. Paola bebia e ia cassinos e clubes pra não ter que pensar em todas as suas frustrações, abandono e solidão. Ela pode ser vista como uma frívola e fresca sem nenhuma empatia, afinal ela sabia que estava errada, mas mesmo assim ela testemunhou contra a irmã, que havia sido obrigada a entrar nessa por ela mesma, e fez questão de perturbar a coitada quando estava presa. Acontece é que o jogo estava acabando pra Paola e havia sido a Paulina quem havia dado o check mate ao se colocar como a mártir. Para ela estar na cadeia seria seu fim e certamente ela preferiria a morte. Imaginava os seus pensamentos corroendo alma até que perdesse toda sanidade. Mas, seu pequeno diálogo com Paulina no final mostra sua genuína vontade de ter conhecido sua mãe, de não ter vivido numa realidade tão abandonada, de ter tido família e  por consequência lar...

Muito menos racional que Paulina, Paola agia por pura emoção tomando decisões precipitadas, convencendo-se do inconvencível. Sua alma era tipicamente perturbada pela ansiedade e sentia-se constantemente vazia. Paola não era naturalmente má, era apenas uma pessoa frágil e ferida demais pra encarar suas coisas. E como diz ditado de facebook, pessoas feridas ferem. Paola é humanizada e transpira verdade nas suas ações, por mais egoístas que sejam.



aqui o buraco é mais embaixo...

Quantas novelas de gêmeos vivendo a vida do outro... Mas quantas delas realmente levaram isso como uma problemática e mais, um crime?

A prisão aqui não parece apenas mais um recurso para vitimizar a mocinha de maneira apelativa e colocá-la como uma coitadinha injustiçada. Paulina cometeu seu crime e teve de encarar isso. Já fazia parte desde o começo. É o argumento inicial e está na abertura da novela. Sabíamos que isso ia acontecer em algum momento. Tudo nesta parte, embora ainda seja um show, é tomado com um tom mais acobreado, dando um requinte pra verdade da situação. Não somente nessas circunstâncias, a situação da empresa depende de um ar mais profissional, demora até que Paulina coloque tudo no eixo de novo. Ela não sabe como fazer, mas tem suas ideias e conta com a ajuda de pessoas do ramo pra tentar reerguer o nome da família Bracho no mercado. O Alcoolismo aqui também não é apenas um merchandising barato e o texto nem se vale disso pra gerar show, estava ali e é um ponto crucial pra união das duas personagens mais presente da trama. É um recurso usado de maneira inteligente pra favorecer a trama, mas ele também se debate como um problema social dentro que se cabe na trama. 



um dia chegarei com um disfarce... 

Se você não se comoveu com o videoclipe (perspicaz aliás) que conta de maneira mais cinematográfica todo o roteiro da novela, pelo menos você conhece essa primeira frase da música. Sabiamente montada essa  melodia consegue te viciar e simplesmente se tornou memorável demais pra ser apenas a abertura de uma novela. É quase um hino de final de tarde. Tudo está ornando de maneira tão sábia nessa música. A entrada com aquele sussurro e vocais embalados apenas por um suave piano. Quando a Flauta e o Clarinete entram ao lado da bateria, ganhando camadas vocais harmonizadas você simplesmente vibra, mas além disso, temos um fervoroso refrão com uma pegada meio rock romântico dos anos 80 (e o que falar daqueles glissandos maravilhosos de sinos?). Se você já ouviu a versão inteira da faixa sabe que se trata de uma mega produção. Não era apenas o acaso. Eles fizeram essa música pensando no sucesso que ela era capaz de atingir. 

As capturas de imagem da abertura são cuidadosamente feitas e harmonizam muito bem com a musica. Aqueles jogos de sobreposição ou aquela cena icônica a la Mulan da Paulina passando a tesoura nos fios ou aquela cena dela sendo presa e Paola assistindo na janela com cara de quem chegou pra chegar? Quando eu assisti a novela pela primeira vez eu simplesmente achava que era assim que a Paulina seria descoberta. É simplesmente empolgante. 



diferentona, barroca e...

Ah! A trilha sonora. O que foi aquilo? Flautas, um jazz safado e o Saxofone. O tema da sensualidade de Paola, seja na sua versão clube ou na versão mais lenta, tornou-se icônico e é tão... tão... tão Sade. Toda a trilha é construída com esse ar meio noir, policial e meio latino. Ela não é apelativa e sabe se portar colaborando pra imagem mais plena e séria que a novela quer passar.  

A direção se encarregou de construir uma paleta mais sóbria, crepuscular e amadeirada pra novela. Tudo está ornando porque essas cores são tão sensuais, mas de uma maneira séria e provocativa. Paulina desfila com seus tons rosados e azuis pasteis pra mostrar a sua personalidade mais branda e paciente, enquanto Leda prefere os tons pendendo pro lilás e púrpuras claros dando a entender a sua personalidade altiva e seu sentimento de superioridade mediante à Paola e Paulina. Mas é dos tons que definem Paola que a novela se recheia. Toda a mansão e empresa estão repletas de uma sensualidade. É como uma cabine vouyer, estamos de fora observando toda essa luxúria pecaminosa e instigante. Paola parece estar presente, como um reflexo da própria existência da trama, em todo o logar. E como já dito antes mesmo que ela não esteja ali, ela simplesmente se impõe, como uma presença fantasma. É a única novela mexicana que eu vi se preocupando com essa questão das cores. 

Além de sua trilha sonora e paleta de cores a novela também acertou na maneira como iria se desenvolver. Contada como um romance policial o clima de tensão tende a aumentar cada vez mais. À medida que Paulina está sendo descoberta e Paola tem medo de ser pega no pulo a novela ganha tons mais nublados e um acúmulo de tensão se dá. É o melhor momento disso. Tudo ali te instiga a continuar assistindo sem parar. Está tão viciante e então vem o boom. Paola simplesmente volta e traz com ela mais uma série de conflitos desordenados pra que a trama resolva. Num geral a novela é bem amarrada (incomum para uma novela mexicana), com um ótimo argumento e desenvolve muito bem os personagens que se propõe a desenvolver. 

Podemos por isso concluir que A Usurpadora não é apenas, talvez, a melhor novela mexicana, mas figura no top 10 das melhores do mundo. E não importa se você não gosta desta novela apenas pelo estigma de novela mexicana, assim como o vinho ela vem se tornando cada vez melhor com o passar dos anos. Salvador Mejía fez aqui seu melhor trabalho como novelista.

Atualmente sendo exibida pela sétima vez no SBT, a trama será em breve comprada pela Rede Globo que almeja, desde o ano passado, inserí-la no catálogo do Globoplay. 

Novelas

manoel carlos e a sua delicada crônica do cotidiano

12:13


cenários aconchegantes...

 Com toda certeza Manoel Carlos é o autor de novelas mais refinado da teledramaturgia brasileira. Há uma coisa aconchegante nos seus textos. Aquelas situações tão cotidianas e aquele diálogo despretensioso que quase te convidam a fazer parte daquela situação. É uma conversa no café da manhã, é uma conversa na fila do banco ou até mesmo com uma desconhecida no elevador. Não é um assunto sobre um acontecimento do roteiro, e nem mesmo pretende ser, é uma conversa sobre o clima, sobre o calor, sobre um desencontro ou sobre as últimas férias de verão (já que no universo do Maneco ter férias de verão é uma realidade) e suas possíveis desventuras. Esse diálogo não está ali pra movimentar a trama ou se quer pra dar andamento na história, ele surge como um recurso de ambientação. Como uma estratégia pra aproximar o público daquela burguesia boêmia e cheia de "white people problems" e de certa forma ele consegue fazer isso muito bem. 

Eu jamais foi ao Leblon (fui à praia somente duas vezes) e se quer sei o que é passar a manhã numa mesa de café gigantesca  debatendo sobre a violência urbana do Rio, mas eu consigo me sentir inserido neste cenário justamente por ser uma conversa tão cotidiana, às vezes trivial. É a conversa que eu teria com meu amigos ou minha  mãe na hora do desjejum ou do almoço. Provavelmente se eu estivesse num elevador com uma pessoa desconhecida ou até com um vizinho menos íntimo eu estaria reclamando do calor, isso é tão real. É uma conversa corriqueira, simples e tão presente no dia a dia. Estes cenários tão confortáveis criam escapes quase que imperceptíveis para o telespectador. É a casa  da vó, é um aras com cheiro de roça, é uma ida a pracinha com as amigas, é uma festa junina de bairro...


tempo pra respirar...

Maneco possuí verdadeiros melodramas. Isso é, são tramas tipicamente novelísticas e dramáticas. Ora pois, uma mãe que perde o próprio namorado para filha adolescente que mais tarde sofre de um câncer e esta mesma mãe como um último recurso pra salvar a filha decide engravidar. São dramas que poderiam render novelas cheias de peso e carga emocional demasiadamente pesada. Quase uma tragédia grega, mas ele nos dá constante momentos  pra absorver a trama e digerir o que vai acontecer ou está acontecendo com tanto naturalismo que nós nem se quer percebemos isso. 

Tomemos por exemplo o argumento inicial de Por Amor: Helena (Regina Duarte) é uma mulher de meia idade bem resolvida e com alguns relacionamentos fracassados. Sua filha, Eduarda (Gabriela Duarte) que se comporta como uma mimada e por vezes ingrata sofre dois abortos seguidos e corre risco de não poder mais ser mãe. O inesperado é que Helena descobre estar grávida de um de seus casos, Atílio (Antônio Fagundes) e coincidentemente Eduarda também se descobre grávida na mesma época. A gravidez de Eduarda é de risco e pode ser a sua última. Todavia, contudo, no dia do parto de Eduarda (que ocorre no mesmo dia do parto da sua própria mãe; cara isso é tão novelístico) seu filho acaba morrendo e tomando conhecimento disso e de que Eduarda não vai mais poder ter filhos por sérias complicações no útero, querendo evitar que a filha tenha um casamento fracassado, mais uma decepção ou que venha sofrer, Helena troca seu bebê vivo pelo filho morto da filha. É de uma irresponsabilidade sem tamanho, de uma falta de ética quase sem noção, mas parece algo que uma pessoa real faria. Que uma mãe cansada de ver uma filha sofrendo por não conseguir ser o que tanto queria: mãe. É importante dizer que essa troca de bebês não acontece no primeiro capítulo, nem no primeiro mês, muito menos nos primeiros cem capítulos, mas sim na metade da novela. Entre um aborto e outro nós temos tempo pra respirar e o mais importante nós temos tempo pra nos preparar pro quê se virá a seguir. E depois que veio, nós temos mais tempo pra digerir tudo, pra que assim no capítulo final o embate aconteça, encerrando assim um ciclo com aqueles personagens. 

Ele cria um conflito, nos apresenta, nos prepara, desenvolve-o e resolve-o nos deixando imaginar o que se virá depois. No meio do dramalhão ele insere cenas de pessoas simplesmente andando por Ipanema ao som de alguma bossa de Tom ou João Gilberto, ele insere outros conflitos que são tão puramente rotineiros como o corte da energia porque alguém simplesmente teve preguiça de ir pagar ou até mesmo um personagem contemplando uma árvore por quase um minuto inteiro sem dizer nada. Então há um equilíbrio, uma temperança que passa naturalidade nas questões. A verdade é que essa trama sem esses espaços com certeza chamaria muito a atenção, mas não iria parecer tão real quanto pretende ser. E o curioso é que esta temporalidade mais lenta poderia até afastar o público, mas o sucesso de audiência de Por Amor em suas quatro reprises mostra o contrário.

as relações humanas e a sensibilidade

Quando Helena percebe que Eduarda não consegue produzir tanto leite quanto a criança demanda ela passa a amamentar a criança. No começo Eduarda acho lindo, mas depois ela se sente enciumada de ver a mãe tão próxima do seu bebê. Ela se sente menos mãe com isso, como se não fosse capaz de cuidar da criança. Isso gera um primeiro conflito. Depois disso, Helena querendo que a criança tenha uma amamentação digna passa a ir na casa de Eduarda quando ela está trabalhando e amamenta o menino às escondidas. Quando descoberta acaba vindo um outro conflito. Mãe e filha ficam estremecidas e Eduarda sente que sua maternidade está sendo questionada de alguma forma. Mais tarde, Atílio descobre a verdade, que ele é o pai do bebê de Eduarda e confronta Helena. Tal acontecimento o chateia de tal forma que ele decide quebrar definitivamente sua relação com ela, que prefere manter a mentira. Contudo, situações acontecem e eles precisam conviver, gerando um estranhamento e é neste clima que a novela termina, com um clima de distanciamento, mas também de cumplicidade entre os dois. E nós ficamos sem saber se eles vão conseguir curar esta uma relação algum dia. 

A cena final da novela, em que Eduarda descobre a verdade lendo o diário da mãe gera uma das mais lindas cenas (bem como uma das mais fascinantes) da teledramaturgia brasileira. Novamente Eduarda se sente ameaçada e com toda razão ela esbraveja pra cima da mãe. Ela não consegue aceitar que não  conseguiu ser "mãe" o suficiente pra gerar um bebê saudável, mas agora já amando o Marcelinho, se desespera com a ideia de que ele não seja tão dela e por consequência dela seja tomado. São tantas questões se passando na cabeça de Eduarda que ela se quer sabe expor tudo e fica um diálogo confuso da sua parte. Helena diz algo como: "Você acha que eu seria capaz de te tomar o Marcelinho? Que eu seria capaz de te dar ele e depois tomar? Se eu fiz isso foi pra te ver feliz. E agora eu iria ser capaz de causar a sua infelicidade?" Essas frases ditas por Helena justificam seu ato egoísta com muito louvor. Ela é humana, não é uma protagonista perfeita, idealizada. É uma mulher que tem suas motivações e algumas delas são tão egoístas que só poderiam ser puramente humanas. 

Há uma sensibilidade no texto do Maneco. Ele é casual, mas profundo. Essa forma tão delicada de abordar as relações humanas é o que me fascina mais nas suas histórias. Os conflitos de convivência com certeza são os maiores vilões das novelas dele, que não escreve vilões. Alma (Marieta Severo), Eva (Ana Beatriz Nogueira), Marta (Lília Cabral) ou Branca Letícia (Susana Vieira) podem até parecer vilãs, mas quando você observa o dissecamento dessas personagens, percebe que são tão presas em suas bolhas ou tão amarguradas que se tornam incapazes de aceitar o real, desprezando-o e como consequência gerando conflitos pra todos ao redor. E é isso. Os conflitos que tornam alguns mocinhos e outros vilões. Suas motivações, a pessoalidades e perspectivas. Talvez a trama que mais reflita isso seja A vida da Gente, da qual foi supervisor de texto para Lícia Manzo, que conta com muita delicadeza a história de duas irmãs Ana (Fernanda Vasconcelos) e Manu (Marjorie Stiano) que com as desavenças do destino constroem uma linda relação que apesar de ter se abalado com os conflitos da convivência, permanece única, cheia de amor e importância. 

ps: e sim há muito dedo dele nesta trama, basta que se observe as outras tramas que Lícia escreveu, ou com outros autores ou sozinha, e perceber que a Vida da Gente é totalmente Maneco.


white people problems...

Joice (Carla Marins) surtou quando descobriu que na verdade era adotada, mas sem entender exatamente o que estava acontecendo e como havia se dado esta adoção ela se revolta contra Helena (também Regina Duarte) e passa a se comportar como uma ingrata ridícula. 

Capitu (Giovana Antonelli) uma menina que sinceramente tem uma agradável situação financeira passa a se prostituir pra poder cuidar do seu filho de uma maneira mais folgada. Tudo isso seria até aceitável se Capitu simplesmente não precisasse disso. 

Tudo isso parece fútil demais pra nossa realidade, certamente...

Manoel Carlos não sabe escrever outra realidade que não seja a de uma mulher branca e rica, ou pelo menos classe média, que sofre com seus problemas burgueses. Tivemos a comprovação disso quando ele precisou escrever sua primeira Helena preta, interpretada pela grande Taís Araújo. E é exatamente assim que ter que ser. É esse núcleo social que ele cresceu vendo e é sobre esses problemas que ele consegue escrever. Todavia catalogar Manoel Carlos apenas como um escritor de "dramas burgueses desinteressantes para o brasileiro médio" é pura bobagem. Ele insere temas extremamente importantes nos seus roteiros e os desenvolve com muita sensibilidade. Mulheres Apaixonadas por exemplo está cheio desses conflitos sociais. Temos um casal de lésbicas que sofrem homofobia na escola, temos uma jovem ingrata que maltrata seus avós, temos uma filha que tem vergonha do seu pai pobre, temos uma libertina que se apaixona pecaminosamente por um padre, uma professora alcoólatra, uma mulher com câncer de mama, a que sofre de um ciúme doentil... E talvez o mais importante desses temas: a professora que tem um marido psicopata e que se apaixona de uma maneira questionável por seu aluno, quase obcecada, causando a ruína desse jovem. Violência doméstica, fragilidade psicológica, suspense e egoísmo... É uma gama de assuntos extremamente possíveis na nossa realidade. Não há futilidades aqui. E eu poderia falar sobre a abordagem extremamente sensível sobre a síndrome de down em Páginas da Vida. 

O cotidiano tem suas tramas...

Parece distante imaginar que o dia a dia que soa tão monótono, sem acontecimentos possa gerar contextos tão empolgantes. Quem poderia supor que os dramas da minha família dariam uma novela. E sempre acontece uma coisa ou outra de vez em quando, mas não acontecem várias. Uma única coisa consegue criar uma outra série de acontecimentos. Nesses momentos Maneco avalia a consequência e o que ela causa mediante a sociedade. É algo difícil de se apurar. Precisa-se de um olhar clínico, um estudo social mesmo. É preciso ver a verdade da vida, a beleza do cotidiano, a sensibilidade das relações humanas, a dificuldade da convivência. Eu costumo dizer que o Maneco tem aquela coisa meio contemplativa do cinema do Ozu misturado com a complexidade existencial do Bergman. Sem maniqueísmos, exageros ou circo (não que isso seja algo ruim, não é isso que eu estou dizendo) ele tece suas tramas nos acontecimentos cotidianos, constrói seus conflitos nas tramas corriqueiras do dia a dia. Ele transforma a nossa vida numa novela e aí quando eles dizem "isso parece coisa de novela" pra um acontecimento absurdo é porque realmente parece. Mas, ir na padaria comprar um pão e esbarrar na vizinha que vai te contar uma fofoca da amiga da prima dela também é coisa de novela; de novela do Maneco. 

Arte

porque você precisa ver Liv Ullman em tela pra ontem

17:03

Liv começou sua carreira no teatro com alguns bons personagens em ótimas peças e não demorou pra que Ingmar Bergman, um dos diretores de cinema mais refinados da história justamente por causa da sua bagagem no teatro, a colocasse no seu elenco de atores de alto escalão artístico. Quem acompanha Bergman sabe que ele tem um grupo restrito de atores que ama repetir sempre e sempre. Ullman não foi nem de longe a que mais esteve em suas obras, ou se quer a que esteve em maioria de suas obras primas (embora figure em muitas delas), não posso se quer dizer que ela foi a sua favorita, entretanto há algo de diferente nesta relação que gerou um casamento que eu também não sei explicar. Ela nunca fez uma coadjuvante estando nas mãos de Bergman e não há estrelismo aqui. É que sua atuação é tão primordial que mesmo que apareça da segunda metade do filme pra frente (A Paixão de Ana) ou não fale uma palavra se quer durante todo o filme (Persona) ela consegue convencer o público da sua legitimidade como atriz.

Falando um pouco sobre Persona, o filme mais experimental de Bergman e um dos mais psicológicos do cinema, nesta obra Liv dá vida a uma atriz, Elizabeth Völgler, que simplesmente deixa de falar, após uma série de acontecimentos e vai para uma ilha se manter reclusa junto de sua enfermeira interpretada pela majestosa Bibi Anderson. Lá a personalidade da enfermeira começa a se confundir com a de Elizabeth. Bergman nos apresenta um monólogo eterno numa série de cenas poéticas e experimentais o suficiente pra nos fazer ficar imersos nos complexos da mente e da isolação social (e parece que estamos vendo muito disso, seja no mais recente de Robert Edgers, O Farol ou nos dilemas da Pandemia que vivemos atualmente). Extremamente complexo e fluído o longa capta a capacidade exímia que a atriz tem de atuar. A representação parece ser algo que está no seu sangue de e assim como ele corre pelas suas veias também emana a genuína capacidade de transmitir verdade nas suas expressões. Em especial neste longa ela precisa se valer das suas expressões, mas elas não são demasiadamente caricatas como num filme de cinema mudo. Aqui há um naturalismo, um silêncio expressivo, uma voz que sai do olhar. Juntamente com os dilemas existencialistas dos roteiros bergnianos a atuação de Liv entrega uma complexidade que habita no interior e se expressa naturalmente como uma vontade de se entregar ao papel e mesmo que nada seja dito você consegue entender suas falas. 


 E o que falar sobre A Paixão de Ana? Toda a frustração necessária é construída magistralmente no semblante desdenhoso de Liv. Embora muito é falado da personagem em questão apenas na segunda metade em diante é que Liv aparece manca e com o fantasma de uma culpa que certamente a persegue mas não a preocupa. Contracenando com Max Von Sydon que desta vez vive um homem depressivo e fracassado que se espelha cada vez mais na sua versão imersa e obscura. Os dois já haviam contracenado anteriormente como um casal em A Vergonha, também de Bergman. Embora no trabalho anterior a química tenha sido certeira o suficiente aqui o trabalho é mais refinado. Há uma indiferença no olhar de Liv que despreza as expressões sôfregas de Max e o personagem por sua vez parece entender isso tão bem que a tensão e desunião nos chegam como um prato de lagostas e brioches. 


Se por um lado em A Paixão de Ana temos uma Liv mais fria e reclusa, em Sonata de Outono, ao lado de Ingrid Bergman (aqui em seu melhor papel no cinema), temos uma atuação calorosa, inquietante e quase que pronta pra explodir a qualquer momento. Há uma necessidade da catarse nas mãos inconstantes e ansiosas de Ullman neste cenário. Ela está tímida, mas precisa urgentemente dizer tudo que está na sua garganta e este cúmulo se culmina num dos maiores diálogos da história do cinema. O argumento é tão verdadeiro que você pode sentir essa filha injuriada e injustiçada pela mãe que de certa forma inconscientemente a despreza, gritando dentro de você. A atuação é tão complexa que seria possível dissecá-la; não somente da Liv, mas também da Ingrid, que simplesmente consegue roubar todo o brilho da cena para si quando a câmera mira em seu olhar arrependido, mas displicente. É o embate de duas gigantes. É a fúria contra a raiva. Há tanto peso e tensão guardados que esse sentimento de estar se libertando é passado para o telespectador com louvor. Distante daquele cinema hollywodiano, livre e destemida Ingrid exprime o seu talento de uma forma tão pura que azeita a personagem e podemos nos compadecer da sua condição irresponsável de fuga, do seu desastre materno e da sua descompensação. Mas por outro lado já afogada na teatralidade de bergman, apaixonadamente emotiva e leve Liv consegue nos fazer sentir a mesma repulsa e fascínio que a personagem sente pela mãe e mesmo que ela a julgue com duras palavras, entendemos seu sofrimento. O dilema das relações.


Mesmo em uma realidade onde Ullman não é o foco realmente da trama ela consegue seu carpe diem com louvor, extraindo o melhor de si para o personagem. Numa pomposa produção, mas também intimista, vívida de cores contrastantes e saturadas, Gritos e Sussurros é um filme sobre o toque e a repulsa do toque. A sexualidade, o abuso e aversão. Aqui dividindo a tela com outras estrelas de Bergman, igualmente talentosas, ela vive a mais libertina de três irmãs. Ingrid Thulin vive uma conservadora que de alguma forma teve um péssimo contato com o sexo e por isso o teme e o repreende em todos os aspectos possíveis, já Harriet Anderson está se compadecendo no leito de morte em meio às lembranças de abandono, da solidão e do desamparo. Há muita sensibilidade nos temas abordados, mas também na captura das imagens que insiste em frisar o vermelho, preto e branco. Morte, redenção e pecado. Sangue, vida e depravação. Repreensão, perturbação e arrependimento. Como sempre Bergman dá preferência para as complexidades e dilemas das relações humanas, mas aqui ele deixa que as imagens falem mais que o diálogo. Carregada de peso e dor a irmã mais velha grita em noites agoniantes, ela brame trêmula a cada vez que a morte lhe sopra o ouvido. Cheia de culpa e proibições a irmã do meio fala por falas interruptas sobre os seus pesadelos e suas restrições. Mas entre a fala e o grito existe o sussurro e ele está aqui sendo representado pela furtividade pecaminosa da irmã mais nova. Liv dá um caráter descompromissado pra essa personagem. Mesmo casada ela tem seus casos e não suporta a ideia de ser negada por algum deles. Ela precisa desse sentimento de pertencimento, mas não somente por uma, mas por várias pessoas. Sua alma parece sofrer aflita em busca dessa atenção. Entre toques negados e aceitos, ela brilha na sua personagem mais dúbia até então. Você nunca sabe se deve julgá-la ou aceitá-la. Você a quer por que no meio da morte que esbraveja em silêncios ensurdecedores e a moralidade fala em murmúrios perversos, existe a fuga, o escapismo que sussurra melodicamente em doces harmonias a pura sedução. Um grito de liberdade. E estas três vozes, como se em poéticos arabescos, ornam um cenário hipnotizante. É quase como se nós estivéssemos em uma pintura do Caravaggio, contemplando três irmãs que não se conectam por causa de seus próprios complexos. 


Por qué você deveria ver Liv Ullman em tela? 

Face a Face, de 1976 pode responder isso. Aqui Liv Brilha sozinha. Neste longa que apesar de longo e extramamente lento, nos culmina para a cena final onde a atriz que vive uma psiquiatra assombrada pela morte e depressão tem seu momemto de catarse. E amigos, que monólogo! Que interpretação! Que texto e emoção. Brilhantemente eloquente a personagem expõe seu trauma, sua raiva, seu ódio, sua violência, sua injúria, seu medo, sua fobia. Eu sou um grande entusiasta do cinema e mediante de tudo que já assisti eu não me lembro de uma atuação tão viva, naturalista, real e verdadeira como esta. Você se incomoda com a angústia, a aflição e agonia da personagem. Vê-la atuando é uma experiência. É um evento, um momento. E por essas outras que você deveria ver Liv Ullman em tela. 


Persona e Gritos e Sussurros estão disponíveis no telecine e Face a Face no cine lá carte. A paixão de Ana está disponível no Youtube. 

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