a usurpadora, um dramalhão refinado

18:52



Tem algo diferente em A Usurpadora que o tempo se encarregou de mostrar. Com aquela trilha sonora lounge jazzística e clima de anos 90, esta novela estava totalmente destoada de suas contemporâneas, à frente e particularmente mais degustante do que suas irmãs de época. Há uma sedução instigadora no clima dessa trama. Não está somente no ar ou na ambientação. Está no texto, no argumento e nas características que os personagens possuem. Assistir A Usurpadora pela sexta vez me fez perceber o quão interessante é a realidade desta novela. Eu posso ouvir a melodia dessa trama, algo como Smooth Operator, da Sade, que inclusive daria uma ótima música pra trilha sonora. 

Quando eu digo que o tempo se encarregou de mostrar o valor desta novela, eu estou dizendo que seu sucessos não é superestimado. A novela simplesmente não ficou datada ou parece estar perdida no tempo. Embora evoque uma nostalgia provinciana e típica noventista o roteiro vai além disso pois permanece atual mesmo que sua história principal seja a mesma clichê de sempre da troca dos irmãos gêmeos. Céus! E como existe isso nas novelas, mas parece que nenhuma delas conseguiu levar isso pro mesmo patamar que A Usurpadora conseguiu. 



uma mocinha não tão mexicana assim...

Quem acompanha a teledramaturgia mexicana, ou pelo menos se esbarrou alga vez na vida com os títulos mais famosos, pôde perceber que parece haver uma regra onde a protagonista deve ser totalmente frágil e ingênua, boba o suficiente pra cair nas tramas da vilã, assim como desajeitada o suficiente pra se encaixar num universo que não a pertence. Maria Mercedes, Maria do Bairro, Marimar, Maria Isabel, Esmeralda, O Privilégio de Amar, Rosa Selvagem, A Madrasta... São muitos títulos com o mesmo arquétipo servindo de protagonista, quase todos aliás. Embora Paulina seja cheia de bondade e esteja sempre disposta a ajudar, ela não se resume a isso. Na verdade Paulina tem duas características primordiais que faltam à Paola: Ambição e Inteligência. Paulina é o mais puro exemplo de uma pessoa determinada. Quando ela chega na casa dos Brachos seu principal desejo é recuperar a dignidade daquela família disfuncional. Primeiro ela tira a Vovó Piedade do vício porque sabe que com ela terá apoio para seus futuro projetos na empresa, depois ela tenta dar uma ajuda mínima para Angélica que está com sua autoestima extremamente prejudicada e por fim, depois, ela recupera a fábrica criando um revival financeiro nos negócios da família. Tudo isso poderia ser interpretado como: "Paulina tem um coração tão bom", mas uma fala em específico da própria mocinha parece mudar completamente toda a dinâmica das suas ações. Quando a outra liga pra avisar que está voltando pra sua vida Paulina pensa: "Ela vai estragar tudo que fiz. Todo o meu esforço terá sido em vão?" Essa preocupação inicial nos mostra que a mulher simplesmente estava encarando isso como um projeto pra sua realização pessoal, um desafio. Em seguida vem uma reflexão sobre sua dedicação ter sido vã, logo seria um tempo perdido com nada. 

Paulina se sente realizada com seu poder e sucesso na empresa. Quando ela ganha a Vovó Piedade ela simplesmente tem o aval pra fazer o que quiser com os negócios da família. E assim ela faz, mostrando ter muito mais capacidade e visão empreendedora que todos os Brachos. Mas com certeza seu maior acerto, além de ter ganhando o coração das crianças, foi se entregar quando percebeu que o cerco estava fechando pra ela. Além de saber que sua pena poderia ser diminuída se caso fosse condenada, esperta ela também se pôs no papel de mártir. Assumindo a barra toda ela sabia muito bem que ganharia pontos com Carlos Daniel e Rodrigo e consequentemente eles iriam depor em seu favor.

Paulina foi uma excelente manipuladora e demonstrou uma eficácia maior nessa arte do que sua irmã descompensada. Talvez seu maior erro tenha sido sua tentativa de ganhar Angélica, que mesmo depois de tudo continuou renegando uma aliança (ou apoio) à usurpadora. A verdade é que Paulina não deu um passo falso nessa situação toda e manter-se imaculada perante Carlos Daniel foi o essencial pra entender a sua posição e se afirmar dentro do jogo. Pra uma pessoa que cresceu beira mar sem ter a oportunidade de fazer uma graduação no ramo dos negócios, ela se mostrava uma pessoa com muita visão de mercado.



ela nem era tão malvada assim e isso que era legal

Talvez a coisa mais perversa que Paola tenha pensado em fazer foi quando ela disse que comeria a língua da Elvira ou quem sabe quando disse que mataria Lalinha, mas ela era apenas uma mulher debochada e cínica. Paola não tinha intenção de matar ou ferir ninguém, afinal, tudo que ela queria era poder se divertir e curtir a vida como uma descompensada. Penso em quantos sugar daddys ela teve na sua adolescência. É sério, eu me pergunto isso. Sabemos tão pouco da vida de Paola e ela faz questão de esconder tudo mesmo, mas de uma maneira sutil, de uma forma que o publico se quer chega a perceber. Paola tinha seus complexos. Aposto que não conhecer sua verdadeira mãe era um deles e provavelmente se sentia mal por sua família adotiva não se importar com ela. Isso fica evidente nos capítulos finais e percebemos o quão desesperada e sozinha ela está. Cheia de inseguranças e desajustes ela tenta prejudicar a própria família de seu marido pedindo 1 MILHÃO DE DÓLARES pra deixá-los em paz. 

Paola é uma figura sombria, apesar de toda sua carisma e sorriso simpaticamente sensual. O próprio diretor deixa isso claro ao manter a novela por meses sem uma aparição dela e quando aparecia era por telefone. O vilão eram os conflitos e a tensão constante que Paulina sentia ao imaginar que poderia ser descoberta. Toda essa mítica por de trás de Paola é alimentada pela própria direção que tornava-a em um fantasma. Como uma sombra flertando com a escuridão e assim às vezes desaparecia no breu, mas você sabe que ela está ali. Bom o que sabemos sobre Paola no final de tudo? Quase nada, mas é possível tirar uma conclusão. 

Inconstante. Paola era inconstante e pouco inteligente. Várias vezes ela teve a oportunidade de ter todo o dinheiro que almejava ter em mãos, mas ela simplesmente deixava isso escapar sempre e sempre. Percebe-se então que não era apenas pelo dinheiro. O dinheiro era só um meio. Ela não conseguia fixar seus pés no chão, ter um lar ou morada. Alma livre, mas também perturbada. Paola fugia todas as vezes dos seus complexos porque não tinha maturidade ou força suficiente para encará-los. Sempre que estava fixa em uma nova ideia ela começava a ter sonhos, manias e desajeitos e então queria pular pra uma nova aventura sem se preocupar como deixou a anterior. É um vazio constante e uma vontade de suprir isso com fantasias e futilidades. Paola bebia e ia cassinos e clubes pra não ter que pensar em todas as suas frustrações, abandono e solidão. Ela pode ser vista como uma frívola e fresca sem nenhuma empatia, afinal ela sabia que estava errada, mas mesmo assim ela testemunhou contra a irmã, que havia sido obrigada a entrar nessa por ela mesma, e fez questão de perturbar a coitada quando estava presa. Acontece é que o jogo estava acabando pra Paola e havia sido a Paulina quem havia dado o check mate ao se colocar como a mártir. Para ela estar na cadeia seria seu fim e certamente ela preferiria a morte. Imaginava os seus pensamentos corroendo alma até que perdesse toda sanidade. Mas, seu pequeno diálogo com Paulina no final mostra sua genuína vontade de ter conhecido sua mãe, de não ter vivido numa realidade tão abandonada, de ter tido família e  por consequência lar...

Muito menos racional que Paulina, Paola agia por pura emoção tomando decisões precipitadas, convencendo-se do inconvencível. Sua alma era tipicamente perturbada pela ansiedade e sentia-se constantemente vazia. Paola não era naturalmente má, era apenas uma pessoa frágil e ferida demais pra encarar suas coisas. E como diz ditado de facebook, pessoas feridas ferem. Paola é humanizada e transpira verdade nas suas ações, por mais egoístas que sejam.



aqui o buraco é mais embaixo...

Quantas novelas de gêmeos vivendo a vida do outro... Mas quantas delas realmente levaram isso como uma problemática e mais, um crime?

A prisão aqui não parece apenas mais um recurso para vitimizar a mocinha de maneira apelativa e colocá-la como uma coitadinha injustiçada. Paulina cometeu seu crime e teve de encarar isso. Já fazia parte desde o começo. É o argumento inicial e está na abertura da novela. Sabíamos que isso ia acontecer em algum momento. Tudo nesta parte, embora ainda seja um show, é tomado com um tom mais acobreado, dando um requinte pra verdade da situação. Não somente nessas circunstâncias, a situação da empresa depende de um ar mais profissional, demora até que Paulina coloque tudo no eixo de novo. Ela não sabe como fazer, mas tem suas ideias e conta com a ajuda de pessoas do ramo pra tentar reerguer o nome da família Bracho no mercado. O Alcoolismo aqui também não é apenas um merchandising barato e o texto nem se vale disso pra gerar show, estava ali e é um ponto crucial pra união das duas personagens mais presente da trama. É um recurso usado de maneira inteligente pra favorecer a trama, mas ele também se debate como um problema social dentro que se cabe na trama. 



um dia chegarei com um disfarce... 

Se você não se comoveu com o videoclipe (perspicaz aliás) que conta de maneira mais cinematográfica todo o roteiro da novela, pelo menos você conhece essa primeira frase da música. Sabiamente montada essa  melodia consegue te viciar e simplesmente se tornou memorável demais pra ser apenas a abertura de uma novela. É quase um hino de final de tarde. Tudo está ornando de maneira tão sábia nessa música. A entrada com aquele sussurro e vocais embalados apenas por um suave piano. Quando a Flauta e o Clarinete entram ao lado da bateria, ganhando camadas vocais harmonizadas você simplesmente vibra, mas além disso, temos um fervoroso refrão com uma pegada meio rock romântico dos anos 80 (e o que falar daqueles glissandos maravilhosos de sinos?). Se você já ouviu a versão inteira da faixa sabe que se trata de uma mega produção. Não era apenas o acaso. Eles fizeram essa música pensando no sucesso que ela era capaz de atingir. 

As capturas de imagem da abertura são cuidadosamente feitas e harmonizam muito bem com a musica. Aqueles jogos de sobreposição ou aquela cena icônica a la Mulan da Paulina passando a tesoura nos fios ou aquela cena dela sendo presa e Paola assistindo na janela com cara de quem chegou pra chegar? Quando eu assisti a novela pela primeira vez eu simplesmente achava que era assim que a Paulina seria descoberta. É simplesmente empolgante. 



diferentona, barroca e...

Ah! A trilha sonora. O que foi aquilo? Flautas, um jazz safado e o Saxofone. O tema da sensualidade de Paola, seja na sua versão clube ou na versão mais lenta, tornou-se icônico e é tão... tão... tão Sade. Toda a trilha é construída com esse ar meio noir, policial e meio latino. Ela não é apelativa e sabe se portar colaborando pra imagem mais plena e séria que a novela quer passar.  

A direção se encarregou de construir uma paleta mais sóbria, crepuscular e amadeirada pra novela. Tudo está ornando porque essas cores são tão sensuais, mas de uma maneira séria e provocativa. Paulina desfila com seus tons rosados e azuis pasteis pra mostrar a sua personalidade mais branda e paciente, enquanto Leda prefere os tons pendendo pro lilás e púrpuras claros dando a entender a sua personalidade altiva e seu sentimento de superioridade mediante à Paola e Paulina. Mas é dos tons que definem Paola que a novela se recheia. Toda a mansão e empresa estão repletas de uma sensualidade. É como uma cabine vouyer, estamos de fora observando toda essa luxúria pecaminosa e instigante. Paola parece estar presente, como um reflexo da própria existência da trama, em todo o logar. E como já dito antes mesmo que ela não esteja ali, ela simplesmente se impõe, como uma presença fantasma. É a única novela mexicana que eu vi se preocupando com essa questão das cores. 

Além de sua trilha sonora e paleta de cores a novela também acertou na maneira como iria se desenvolver. Contada como um romance policial o clima de tensão tende a aumentar cada vez mais. À medida que Paulina está sendo descoberta e Paola tem medo de ser pega no pulo a novela ganha tons mais nublados e um acúmulo de tensão se dá. É o melhor momento disso. Tudo ali te instiga a continuar assistindo sem parar. Está tão viciante e então vem o boom. Paola simplesmente volta e traz com ela mais uma série de conflitos desordenados pra que a trama resolva. Num geral a novela é bem amarrada (incomum para uma novela mexicana), com um ótimo argumento e desenvolve muito bem os personagens que se propõe a desenvolver. 

Podemos por isso concluir que A Usurpadora não é apenas, talvez, a melhor novela mexicana, mas figura no top 10 das melhores do mundo. E não importa se você não gosta desta novela apenas pelo estigma de novela mexicana, assim como o vinho ela vem se tornando cada vez melhor com o passar dos anos. Salvador Mejía fez aqui seu melhor trabalho como novelista.

Atualmente sendo exibida pela sétima vez no SBT, a trama será em breve comprada pela Rede Globo que almeja, desde o ano passado, inserí-la no catálogo do Globoplay. 

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