ozu e a sensibilidade da rotina

17:56

 

Ah, o cinema "ozuniano" !

Com toda certeza, Ozu foi um dos diretores de cinema mais influentes da história, falo isso com tranquilidade. Não precisamos ir muito longe pra perceber isso, ora pois, a aconchegante contemplação do vazio nas animações do Studio Ghibli ou a delicadeza cotidiana das novelas Manoel Carlos, do oriente ao ocidente encontrar fascínio nas cenas do dia a dia se tornou uma realidade, mas ninguém conseguiu transmitir isso com tanta leveza e poesia quanto ele, o mestre do cinema contemplativo, Ozu.

Pai e Filha, Também Fomos Felizes, Era uma vez em Tokyo, Flor de Equinócio, O Fim Do Outono... Nossa, são tantos títulos impressionantes que eu poderia fazer um post apenas listando todas as suas obras primas, mas hoje eu vim falar de uma delas em específico: o longa de 1962, A Rotina Tem Seu Encanto.

Este foi o último trabalho do diretor que veio a falecer apenas um ano depois em decorrência de um câncer. O filme tornou-se um belíssimo retrato da velhice, da solidão e da função da família. Às vezes é preciso viver toda uma vida pra encontrar alguma beleza na cansativa habituação dos costumes cotidianos e foi isso que Ozu nos trouxe em seu último suspiro de vida. Embora seus filmes já tivessem um sensível olhar sobre o cotidiano, nenhum deles deixou tão claro como era tão exaustivo, mas também tão belo estarmos vivos. É uma perspectiva até otimista demais pra tempos como este, mas uma vez que você conseguir ver por esta lente talvez tudo tenha um novo sentido.

se acostumar a uma nova rotina é bem difícil

Como de costume nas obras de Ozu, temos um casamento arranjado como pano de fundo pra trama - todavia bem diferente das suas tramas anteriores não tem no casamento. Não é o seu foco, mas sim, apenas, seu catalisador. É a partir do momento em que Shūhei Hirayama (Chishū Ryū), pai já de certa idade, percebe que Michiko (Shima Iwashita), sua filha de 24 anos, talvez esteja sacrificando seu futuro para cuidar dele, que o protagonista começa a não só perceber que precisa “soltá-la” para o mundo, como também o quanto ele já está idoso. O sentimento é, lógico, conflitante. Sem a filha, Hirayama perde sua companhia, apesar de ter ainda outro filho vivendo sobre seu teto, além de um casado. 

Na cultura patriarcal japonesa dos anos 60, a mulher é essencialmente do lar, já que vive sua vida primeiro para seus pais e, depois, para seu marido, mas esse não é o ponto que Ozu deseja discutir. Como disse, o casamento ou melhor, a possibilidade de casamento, é, apenas, o mecanismo utilizado para sacudir o status quo e permitir a contemplação da finitude, da velhice, da solidão e, sim, também da felicidade. No meio disso, Hirayama tem ocasionais reuniões com seus amigos de escola onde eles bebem e seguem um mesmo ritual todas as vezes. Fazendo as mesmas piadas, debatendo os mesmo temas, relembrando as mesmas histórias. Em uma dessas reuniões, porém, Sakuma (Eijirō Tōno), envelhecido e empobrecido professor de literatura deles, aceita o convite para jantar e, durante a cerimônia, Hirayama descobre que ele ainda vive com sua filha Tomoko (Haruko Sugimura) que há muito “passou da idade” para casar, revelando-lhe um possível futuro indesejável para sua própria filha Michiko.

É como se Hirayama acordasse de um torpor. O torpor causado pela comodidade, pela rotina, pelo uso repetido do caminho mais viajado. Sua vida é confortável em casa, com sua filha constantemente dando-lhe atenção, como o preparo do jantar, o aquecimento da água do banho e a lavagem de suas roupas. Mas ele percebe que isso é ele sendo pequeno, mesquinho e não pensando no futuro que está roubado de Michiko. Claro que estamos falando de uma obra de Ozu e isso não vem com realizações expositivas nem com reações exageradas. Muito ao contrário, Chishū Ryū é um caldeirão de emoções que, porém, ele sabe como ninguém esconder, revelando aqui e ali, discretamente, com olhares, com flexão de voz e com o uso de um artifício narrativo importante para Ozu: a bebida. O sake e a cerveja são quase onipresentes na filmografia do diretor, que foi sempre pessoalmente muito afeito ao álcool e, em A Rotina Tem Seu Encanto isso é particularmente relevante já que o protagonista efetiva, mas discretamente, foge para a garrafa de maneira a afogar o que percebe de sua vida. Acontece que, assim como o casamento arranjado não é tema do filme, o alcoolismo também não é. Ele é apresentado como parte da vida, com parte de comemorações, como mais um elemento que compõe o cenário.

Hirayama estava negando começar um novo momento em sua vida. Exaurido de uma nova tentativa de adaptação, ele prendia Michiko junto a ele de alguma forma. É até fácil entender o seu medo. Ele estava completamente agarrado a ideia de conformação. É assim que a rotina se comporta e quando dela tentamos fugir é como se estivéssemos entrando em um novo país onde não conhecemos exatamente nada e isso cobra um longo processo de familiarização. Pode parecer que Hirayama era apenas alguém com medo de pegar um trilho sozinho, mas sempre há uma história por de trás de tudo e Ozu quer justamente que vejamos isso.



a rotina terá seu encanto

Desde a revolução industrial somos inseridos num modelo muito mais cansativo de rotina. Estamos condicionados a nos entregar de uma maneira quase inconsciente a isso, sem nenhum questionamento. Se não o ócio, a rotina.

Em dado momento do filme podemos absorver toda a tristeza de Tomoko. Dada como uma fracassada, ao qual só lhe restou um caminho: cuidar do pai bebum. Tomoko simplesmente não aguenta mais toda aquela mesma coisa de sempre. Esgotada, sentindo-se humilhada e como lhe tivesse restado apenas o mais do mesmo, ela se desaba em um choro tão inconformado que chega doer de assistir. Não podemos fazer nada por ela e nem mesmo ela sente que pode fazer algo por si. Por alguns segundos vemos todo o seu sentimento de injúria ser vulneravelmente exposto. As portas do seu estabelecimento estão abertas e a tv está ligada. Tomoko estava tão aborrecida que não se importou com aquela exposição tão sentimental. Para os costumes de socialização dos japoneses expor-se assim chega a ser vergonhoso e até mesmo constrangedor, mas Tomoko estava tão fadigada de tudo isso que ela se quer se importou. Seu choro é interrompido pelo pai que pede auxílio para banhar-se, mostrando como nem mesmo tempo pros seus complexos ela parece ter. Depois disso, ainda temos uma última conversa entre pai e filha. Ela relembra momentos de alegria saudosos de outrora. Pelo seu olhar eles parecem distantes, mas ainda há uma coisa no seu semblante que nos mostra uma esperança, ainda que mais fria, de dias melhores. No meio das lembranças sorrisos entre os dois e percebemos então que embora extremamente dura, a rotina tem seu encanto. E é verdade que o homem sempre precisou trabalhar e dormir e no dia seguinte se repete o anterior. Mas, no final não é como se estivéssemos vivendo num looping, pois cada dia tem um novo rumo e mesmo que os dias dependam do que se passou para existirem, eles ainda funcionam individualmente. Prova disso é a famosa frase: "amanha será outro dia" e dia após dia coletamos novas lembranças, contamos novas histórias , tiramos novas fotografias, gravamos e assistimos novos filmes, ouvimos novas músicas, lemos novos livros, cultivamos novas flores, absorvemos novas paisagens.

epílogo: também fomos felizes

Viver às vezes parece cansativo; precisamos de escapes. Temos nossos compromissos, nossas obrigações e responsabilidades. É quase um sonho tentar viver em total despreocupação em boemia, sem razão de ser. No final daquele cansativo dia quente, sabendo que temos que fazer o mesmo no dia seguinte esteja ele quente ou não, tomamos um banho descansando as costas e nos entregamos ao sono. Tenho que trabalhar pra comer, comer pra sobreviver e sendo assim sobreviver pra tentar em algum momento apenas viver. Quem tem que pagar aluguel precisa de se preocupar com morar, a mãe tem que se preocupar em garantir a vida da sua cria e as crianças tem de se preocupar com construir um futuro. A rotina cansa, ela não dá tempo. Poucos os momentos em que paramos pra refletir e entender o mundo industrializado que vivemos. Globalizamos, mas a ida a Paris é irreal para 70% das pessoas no nosso país, elas estão ocupadas demais tentando manter-se vivas pelo menos até o dia seguinte. O amanhã é incerto, coisa de futuro. Entretanto, além da morte, se vivos permanecemos, de uma coisa temos certeza, seja cá ou lá, o amanhã será, se não a mesma, uma nova rotina e assim segue a humanidade: presa em seu movimento circular entre o nascente e o poente. 

Nem tudo porém, é desprazer. Todo domingo tinha macarronada na casa da vovó e nas sextas íamos dar um volta pelo lago. A rotina pode até ressignificar estes momentos, dando um ar cotidiano pra eles, mas ele continuam tendo suas significações próprias. É importante não deixar a rotina transformar isso em regra ou obrigação também. Mesmo que eu tenha que acordar todos os dias pra tentar sobreviver, eu ainda sei que durante esse tempo eu terei momentos genuínos de felicidade, afeto e companheirismo e é disso que Ozu está falando em a Rotina Tem Seu Encanto. Seus personagens ou estão acomodados com a rotina, ou saturados demais pra tentar algo novo, mas eles ainda tem seus sinceros momentos de vida e em meio a um mundo que caminho para o desgaste emocional e físico é importante ter a consciência da capacidade de não apenas coexistir. Estamos desengrenados e não temos certeza de onde vamos chegar, mas ainda somos humanos e não máquinas. O sol ainda floresce todas as manhãs e apesar das dores, dos desencontros, das ilusões, dos fracassos, dos momentos de solidão, das dúvidas e do choro, também fomos felizes.

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