rococó, o perfume da aristocracia

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o perfume, parece que eu consigo sentir o perfume do "balanço". O próprio marido (que na ideia original seria um padre, mas por pura audácia Fragonard, resolveu botar o marido mesmo) empurra sua amada para os braços  do amante. Totalmente destemida ela levanta sua perna de uma maneira tão docemente provocativa pra que o afortunado veja os detalhes de renda do seu vestido, ou será a ceroula de cetim? Do alto o cupido faz sinal de segredo e silencio de uma maneira debochada. O pobre corno entregando sua esposa para as mãos do amante, mas aposto que vocês não imaginam para quê. Numa metáfora completamente óbvia, para os contemporâneos da época, perder os sapatinhos significava perder também a virgindade. Talvez o maior exemplo dessa metáfora seja o clássico dos contos de fadas, "Cinderela". A menina que vai ao baile e perde o "sapatinho" e em seguida o príncipe passa a "testar-se" em todas as moças do vilarejo para encontrar qual era a mais "apertadinha" e certamente esta seria a doce Cinderela. Bem provocativo e audacioso não? Assim como em "Cinderela" o balanço mistura essa lúdica inocência a uma engenhosa malícia quando nos mostra o marido alçando em leves empurros sua esposa num salto lírico diretamente aos braços do amante para perder a a virgindade com direito a muito frufru, bordados e firulas. Assim é o rococó. Essa essência "safadinha" e totalmente descompromissada da burguesia francesa, pura boemia de ser. 

Pomposos babados, rendas e buquês. Os anos vem e vão e o rococó continua encantando os olhos e fomentando fantasias diferentes. Todavia, contudo, nem sempre foi assim. Quando essa estética artística apareceu pra atenuar em tons pastéis os excessos da monarquia  absolutista francesa os cidadãos franceses padeciam na fome e na miséria ela foi tida como mais uma bobagem sem motivos da monarquia. Visto como uma futilidade sem tamanhos o rococó foi o último suspiro de uma França despreocupada e colorida, já que logo depois disso tivemos a queda da bastilha, reis decapitados em praça pública, brigas internas numa política instável e até mesmo um imperialismo descompensado de Napoleão. 

lady em passeio devanioso, fragonard


barroco e rococó

Muito além de Madame Pompadour e o Balanço, essa joia hedonista da arte evoca o retrato de uma aristocracia que estava farta dos visuais e peso do barroco palaciano, suntuoso e solene praticado por Luís XVI. Essa oposição buscava um escapismo daquele ambiente tão caravaggiano em vermelho e dourado, horrorizado do vazio, cheio de ornamentos e escândalos. Ainda se perdurando nas voltas, mas aqui devo deixar claro que elas respiram, (ah como elas respiram) e trocando o dourado e o acobreado pelo prateado que em arabescos, folhas e conchas sobrepõem tons de azuis açucarados, rosas pasteis, amarelos suaves, verdes leves o estilo emana sensualidade, delicadeza, elegância e graça. 

Se no barroco a magnitude da igreja era reforçada a cada nova tela, nos exageros na Basílica de São Pedro, nos dramas trágicos de Rubens, na visceralidade poética de Artemísia ou no nefasto desejo da luz de Caravaggio; aqui nós temos imagens de uma elite que saiu para brincar de cabra cega, fazer um picnic ou até mesmo fornicar sobre a relva respingada do orvalho. A beleza está nos sentidos. Em ver beleza, em comer gostoso, em tocar o corpo, em sentir o cheiro do amanhecer, em ouvir Mozart e Vivaldi, em correr por aí no alvorecer, em sentir o gosto acetinado da aurora. É tão pecaminoso e não há culpa. Há muito descompromisso com a culpa religiosa. O sexo está em todos os pequenos detalhes do rococó. Não há profundidade, tudo é muito fútil, frívolo e superficial e é exatamente assim que é pra ser. 

Embora preserve muita coisa do barroco, como o próprio exagero em si (mas aqui mais contido), a teatralidade e o jogo de luz e sombra presente, o rococó se vale das suas próprias características. Além das já ditas à cima: tons pasteis, paletas suaves, formas de conchas; o rococó ainda exala muitas outras coisas extremamente próprias como: a preferência por gesso e madeira (do que o típico mármore), linhas fluídas, visuais intimistas, motivos florais, devaneios e floreios luxuriosos. 

louise o'murphy, garota em reclinação, boucher

Que comam brioches!

Podemos concluir que o rococó é uma arte da elite para elite. Dos delírios ludibriados da aristocracia que precisava imediatamente de um refúgio da chatice sustentada pela monarquia da época. Flutuos borbulhantes, vozes  aperoladas, fascínios, paisagens sonoras, confabulações maravilhosas. Eles estavam vivendo em outra realidade. Uma realidade de champanhe, ilusionados pelas plumas e pelo divertimento e assim fechando os olhos para uma França devastada pela fome e pelo descaso. E talvez, com toda certeza, esse movimento egoísta e furtivo da burguesia tenha contribuído ainda mais para a revolta da população pobre parisiense culminado na revolução francesa. Embora sua índole e caráter tenham causado sua ruína, o rococó permanece tão vivo influenciando toda uma estética que está presente na maioria das coisas hoje em dia. Olhamos cantoras como Melanie Martinez ou no clipe mais recente da cantora Aurora (exist for love), quem sabe no videoclipe de "Áudio de Desculpas" da Manu Gavassi ou mesmo na paleta de cores e traços de cartons como Steven Universe e She-ra (a da netflix). O rococó continua impressionando tanto porque como um escapismo proporciona sensações oníricas de um outra realidade, quem sabe talvez sobre fuga de outrora, como se no livor da língua tivesse um gostinho proibido de macarons e cupcakes, um secreto perfume gostosinho. Perfume de fantasia burguesa.

peregrinação à ilha de cítara, watteau

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