Um texto, ou análise, sobre a fragmentação da personalidade em Cisne Negro
14:46o lago dos cisnes e o cisne negro, uma breve introdução
Em fevereiro de 1877, Tchaikovsky mostrou-nos pela primeira vez, no teatro Bolshoi em Moscou, seu Magnum Opus, Lago dos Cisnes: Op. 20., em um espetáculo dramático, melancólico, trágico e shakespeariano.¹ A suíte foi criada a partir de contos populares russos e alemães² e conta a história de Odette, uma princesa aprisionada na figura de um cisne pela maldição de um feiticeiro malvado, Rothbart. A maldição, porém, dura apenas em quanto houver raiar de sol, o que significa que durante o período da noite, Odete se transmuta em sua forma humana novamente. Para que seu infortúnio fosse finalmente cessado, era necessário que um admirador lhe declarasse amor e fidelidade. E, caso fosse traída, Odete permaneceria para sempre como um cisne. Numa tarde, após ser vítima de uma perseguição por parte de um príncipe, chamado Siegfried, Odete se revela, explicando sua condição, e encantado com a beleza de Odete, Siegfried promete quebrar o feitiço. Entretanto, ao descobrir o contratempo, transforme sua filha Odile, o cisne negro, em uma cópia perfeita de Odete, dessa forma confundindo o príncipe, que enganado, declara amor e fidelidade a Odile. Diante da sua condição, agora irremediável pela traição de seu amado, Odete decide se matar jogando-se no lago, para por fim em seu martírio, Siegfried, na esperança de viver ao lado de sua amada, na vida após a morte, faz o mesmo.
O lago dos cisnes, ao longo do tempo recebeu diversas adaptações, inclusive aquela icônica da Barbie, mas talvez a mais emblemática e memorável de todas tenha sido O Cisne Negro, de 2011, dirigido por Darren Aronofsky, que recontou-nos o conto a partir de uma perspectiva completamente diferente.
Cisne Negro tem como protagonista Nina, interpretada por Natalie Portman. Nina embora já seja uma adulta, comporta-se de maneira infantilizada e imatura. Tímida, extremamente dócil, meiga e que por vezes assume uma postura frígida, zelando pela pureza da sua essência. Nina, ao que nos é mostrado, tem como objetivo maior, se tornar uma bailarina perfeita.
A personagem, quase que instintivamente, preserva uma natureza ingênua, sem nenhuma malícia e porque não, romântica. Nina, assim como Odete é o estereótipo perfeito que uma protagonista de conto de fadas exige. Mas, há uma grande diferença entre ambas: Odete foi criada para ser assim, a protagonista perfeita de conto de fadas; já Nina estava constantemente se apropriando deste papel, porque novamente, seu objetivo de vida era ser a bailarina perfeita, bailarina perfeita para interpretar Odete, por conseguinte, a Odete perfeita.
Sua mãe, Erica (Barbara Hershey), é a principal responsável por sua extrema infantilização. É possível notar, em diversos momentos do longa, Erica adotando uma postura super protetora que, tem por finalidade reforçar a fragilidade de sua filha. Prova disto é a decoração, extremamente infantil, do quarto de Nina. Um predomínio da cor rosa, associada à pureza e infância, ursos de pelúcia, entre outros detalhes. Inclusive é até difícil de acreditar que a personagem tem 28 anos.
Alimentando continuamente esta postura, Nina abdica e nega de outros comportamentos naturais do ser humano. Portanto raiva, desejo, sensualidade, e outros, todos são cindidos. Todo este lado interditado, toda esta barreira, funcionam como um feitiço. Portanto, Nina, por desejo de sua própria mãe, não teve a oportunidade de crescer, ficando presa na casca de uma menina, cativa de uma figura que lhe foi imposta, assim como Odete, tendo seu desejos e vontades interditados, enclausurados num cárcere psíquico. Devido a isso, Nina nunca experimentou a liberdade de expressar-se de maneira honesta, em outras palavras, de ser ela mesma.
Nina, o reflexo das exceptivas pessoais de sua mãe
Quando tornou-se mãe, Erica era muito jovem, e por este motivo teve que deixar sua carreira, de bailarina em ascensão e, sentindo-se cansada e frustrada para recomeçar, dedicou-se única exclusivamente na tarefa de cuidar de sua filha. Desta forma, o nascimento de Nina pode ser interpretado como a morte da carreira da mãe. Como consequência, a protagonista vive dominada por uma mãe controladora, da qual além de definir como deve ser a sua postura e comportamento, é intrusiva e invejosa. O desejo de Erica é tornar Nina, em tudo aquilo que ela não pôde ser. Seu comportamento super protetor, anteriormente destacado, conforme avança o filme toma um caráter sufocante, que mais fala sobre rejeição do que sobre cuidado. e se, antes esta atitude impedia que Nina tivesse alguma individualidade, agora reprime qualquer traço individual que nela possa vir a despertar.
Nota-se nesse contexto familiar, a ausência de um espaço em que seja possível o estabelecimento de laços sociais de confiança, em que a protagonista possa falar e se manifestar, seja através da expressão dos sentimentos, seja através do desenvolvimento gradual de atitudes por parte da mãe que viesse corroborar para a inserção de “Nina” no universo adulto. A genitora, mantém com atitudes infantis como forma desta não sair do seu controle, sempre num processo de manipulação. Nessa relação entre mãe e filha era preciso sentir sentimentos de angústia e alívio, que segundo Lamb (1981) considera a sequência de angústia e alívio especialmente merecedora de atenção por causa das oportunidades que ela oferece de importantes episódios de aprendizado social. No enredo do filme, percebe-se uma ausência desse sentimento, onde só é construída uma interação social apenas entre mãe e filha sem que se viva as frustrações naturais de ganho e perda que a vida possa oferecer. Nina não consegue integrar e não consegue por estar fundida à sua mãe, numa corrente de amor e ódio.
Portanto, se alguém me perguntar do que exatamente se trata Cisne Negro, eu diria que o longa reporta a história de uma mãe frustrada, que coloca suas expectativas de vida projetando-se para a filha. Emoções e sentimentos são projetados de forma reprimida, em torno de um sonho da filha, em se transformar uma famosa bailarina.
Pressionada por uma mãe que abdicou da própria carreira em prol de criá-la, a personagem, como que pra pagar o sacrifício de sua mãe, não se permite cometer erros e foca todas a sua energia e disposição na sua tenra carreira. Nina passa horas treinando, dedicando-se de maneira exemplar e rigorosa.
Ao ser escalada para o papel de Odete, Nina acredita ter capacidade de entregar uma performance maravilhosa e, sentindo-se honrada não pretende estragar ou perder a oportunidade que há muito esperava. Como possuí as mesma características - e personalidade - de Odete, Nina consegue interpretá-la com maestria e perfeição. O desafio, porém, surge quando Nina precisa interpretar Odile, que é o total oposto de Odete: maliciosa, sensual e meticulosa. O diretor responsável pelo espetáculo, Thomas (Vicent Cassel), tem noção do potencial de Nina, por isso a escalou para o papel. Contudo, Thomaz não somente deseja que ela represente o Cisne Negro, mas que se torne ele também.
Entretanto, Nina não consegue performar com a sensualidade que a personagem exige. Thomaz, que a instiga das mais variadas formas, a seduz para que ela se transforme em Odile, porém, reticente, ela se sente culpada todas às vezes em que precisa demonstrar alguma sensualidade, mesmo que maneira íntima, como na cena da masturbação. Pressionada, a personagem começa a questionar a sua capacidade, cobrando de si mesma um comportamento oposto, esforçando-se demasiadamente e sendo assim se estressando cada vez mais e mais.
Como se sua falta de adequação ao personagem já não fosse o suficiente, o medo de perder o papel pra sua colega de trabalho Lily (Mila Kunis), que conseguia interpretar Odile, perfeitamente, lhe causa um sofrimento psicológico descomunal. Lily é sedutora. Não por ser, necessariamente, sensual e provocativa, mas por ser o total oposto de Nina. É tudo o que ela não é e precisa ser.
A protagonista já possuía uma mente instável. Paranoica e obcecada pela perfeição, além de apresentar outros distúrbios como: automutilação, bulimia e anorexia, distorção da própria imagem, disformia corporal que, diante de devaneios, pareciam apenas metáforas para sua transformação em Cisne Negro, quando na verdade eram reais.
A pressão do diretor, os ensaios árduos e exaustivos, o medo de ser substituída a qualquer momento, a mãe que, ao perceber a deterioração da filha, tenta privá-la do balé e o ambiente de competição e tensão, alimentado por Thomaz, se transformam em condições sufocantes demais, causando diversos transtornos em sua mente e seu lado reprimido acaba se personificando em uma segunda personalidade incontrolável e antagônica. Esse duplo, que é complexo demais pra que ela consiga lidar, será reprimido pela protagonista e projetado na pessoa de sua rival, Lily. Sendo assim, cada vez que se sente inapropriada para o papel de Odile, Nina projeta raiva e inveja sobre a figura de Lily, da qual também admira por conseguir ser o que ela não é. Essa situação vai criar um mix de sentimentos e sensações antes não explorados, chegando aos extremos de fantasiar-se tento uma experiência sexual com a colega. O sexo neste momento se demonstra como o auge desse controverso fascínio, justamente por ser algo que Nina considerava como subversivo, mas ainda assim, desejável.
Essas fantasias evocavam na personagem, além da necessidade de novas experiências, a emoção - e também a vontade - de ser alguém completamente diferente, ou de se libertar finalmente aquela personalidade reprimida, da qual lentamente está tomando conta do corpo de Nina. O que se vê a partir daí é um intenso processo de fragmentação da personagem, que nesta altura, já não suporta mais esconder a sua outra face, o seu outro lado. Daren, reforça a percepção alterada da realidade de Nina, a partir da segunda metade, com o uso constante de espelhos. Os reflexos que vemos são muitas vezes enganosos e parecem ter vida própria. Desta forma, fica evidente que a persona alternativa de Nina, está ganhando autonomia e começando a agir independentemente.
No apogeu da sua metamorfose, no dia da grande apresentação, Nina comete uma falha devastadora enquanto performava o Cisne Branco. Sentindo uma enorme culpa e imaginando-se já arruinada, desconta sua raiva brigando com Lily no camarim e no ápice do confronto, intencionalmente mata a colega. Como sua preocupação com o espetáculo é maior do que qualquer sendo de moral, a bailarina retorna aos palcos sem se importar, agora totalmente transformada em Cisne Negro, e realiza uma apresentação com um desempenho transcendental. Seus movimentos são fluídos e hipnotizantes, sua pele exalta a sensualidade necessária e seu olhar é própria definição da malícia. Nina, alcança a perfeição, não como Odete, mas como Odile. Nina não errou os passos de Odete por puro acaso, mas porque já não era mais o Cisne Branco.
Contudo, preparando-se para o ato final, a personagem, percebe que, na verdade não havia matado Lily e sim ela mesma, afinal ela era a única coisa em seu próprio caminho. Quando Nina, retorna ao palco para performar a morte do Cisne Branco, está ferida, já que havia deferido um golpe contra si mesma. E num final tão dramático, trágico e shakespeariano quanto o de Lago dos Cisnes, Nina mata o cisne branco, tornando-se o cisne negro, ela mata Odete e tornar-se Odile, ela mata seu antigo eu, e transmuta-se em uma Nina perfeita., digna de todas as salvas de palmas. Esta cena pode ser interpretada de várias formas, num mais, não necessariamente Nina morre, mas sim a antiga Nina, a Odete.
Percebe-se assim, que o enredo do filme “Cisne Negro” vincula-se a uma dissociação da personalidade, que nos permite atrelamos aos estudos de Bowlby (2009), na perspectiva do apego, que nos diz: ser um sistema afetivo que tem proximidade como previsível. É visto como uma classe de comportamento social e ocorre quando são ativados certos sistemas comportamentais para pessoas essenciais. Esta ativação é processada por sistemas reguladores de segurança mediante a uma situação de estresse que exige uma postura de defesa. Nina, ao perceber que poderia ser substituída e que poderia não ser a mais perfeita entre todos não poupou esforços para descascar-se e transformar-se numa outra persona.
O estigma da perfeição também perseguia Tchaikovsky; um outro
Tchaikovsky, de acordo com suas biografias, sempre demonstrou muita aptidão e talento para música. Sua música, alegórica e cheias de elemento surpresas, se destacavam das outras criadas pelos seus contemporâneos. Sempre com um teatral e performático, Tchaikovsky se destacou compondo grandes peças de sucesso para o balé clássico. Mas não quaisquer peças de balé clássico, e sim as mais importantes peças da história do balé enquanto arte. Lago dos Cisnes de 1877, A Bela Adormecida de 1890, e O Quebra Nozes de 1892.
Contudo, uma de suas maiores obras, O Quebra Nozes, foi alvo de seu desgosto e reprovação. Primeiro, porque a obra não foi um grande sucesso, obtendo muitas críticas por não ser fiel ao livro; segundo, porque Tchaikovsky detestou o que ele havia produzido ali. A verdade é que ele se sentia alheio à aquele projeto. A ideia de transformar o livro de Amadeus Hoffman (1776-1892), partiu dos coreógrafos Marius Pepita e Lev Ivanov, com base na adaptação de Alexandre Dumas (1802 - 1870). Nesse sentido, o controle criativo não estava exatamente sob as mãos de Tchaikovsky. Em uma de suas muitas reclamações sobre o processo criativo da suíte, o compositor disse não ter liberdade criativa sobre as partituras, que tinham de ser criadas em cima dos movimentos criados pela dupla de coreógrafos. Quando o resultado final se deu, a postura de Tchaikovsky não poderia ter sido outra: crítica e decepcionada. Tchaikovsky chegou a dizer que se tivesse feito isso sozinho, o resultado seria mais agradável.
Mas, sinceramente eu começo a me questionar sobre: o quanto disso não era sobre o ego do compositor? E eu não estou falando sobre o fato de O Quebra Nozes não ter conseguido o retorno esperado, já que anos antes, Lago dos Cisnes teve uma estreia desastrosa e Tchaikovsky morreu acreditando que este era seu maior fracasso³, quando na verdade se trata da peça de balé mais memorável e reproduzida de todos os tempos; status que a peça somente alcançaria depois de uma segunda montagem, encenada em São Petersburgo em 1895, reformulada justamente por Pepita e Ivanov. Mesmo com o fracasso comercial de Lago dos Cisnes, o compositor via-se extremamente satisfeito com o resultado final. Tchaikovsky, não gostava de O Quebra Nozes porque não era a cabeça por de trás daquele projeto, não o considerava como sendo algo genuinamente seu, não continha a sua assinatura e enxergava-o como limitado, não conseguia se ver como o criador, ou o único artista, por de trás daquele espetáculo natalino; e por isso aquela peça não era perfeita aos olhos. Não havia naqueles acordes sua total entrega, não havia naquelas partituras a totalidade da sua dedicação. Para ele isso era suficiente pra reduzir O Quebra Nozes em uma suíte anêmica, não tão interessante e defeituosa.
fontes:
https://en.wikipedia.org/wiki/The_White_Duck
https://www.historyhit.com/1877-disastrous-premiere-tchaikovskys-swan-lake/
https://www.britannica.com/biography/Pyotr-Ilyich-Tchaikovsky
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