Arte

delicadeza e fantasia no traço de María Pascual

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María Pascual (1933-2011), uma das mais renomadas ilustradoras espanholas, deixou um legado que continua a encantar gerações. Nascida em Barcelona, em 1933, Pascual iniciou sua carreira artística aos 14 anos e rapidamente se destacou pelo talento e sensibilidade que imprimia em suas obras. Seu estilo único e encantador transformou-a em uma figura icônica no mundo das ilustrações infantis.

A arte de María Pascual é marcada por sua habilidade em capturar a essência da infância através de traços delicados e cores vibrantes. Suas ilustrações não são meramente desenhos, mas janelas para mundos mágicos onde a imaginação das crianças ganha asas. Cada página ilustrada por Pascual é uma verdadeira obra de arte, repleta de detalhes que convidam o olhar a se perder em suas histórias visuais.

Ao longo de sua carreira, Pascual ilustrou mais de 300 livros, abrangendo desde contos de fadas clássicos até histórias originais. Livros como "El libro de las hadas" e "La muñeca Margarita" tornaram-se clássicos, não apenas na Espanha, mas em diversos países onde suas obras foram traduzidas e publicadas.

O impacto de María Pascual no universo da literatura infantil vai além de suas primorosas ilustrações. Seu trabalho ajudou a moldar a estética e o estilo de muitos artistas que vieram depois dela. A forma como ela retratava as emoções e expressões dos personagens inspirou uma nova geração de ilustradores a buscar a mesma profundidade e autenticidade em seus próprios trabalhos.

Pascual não apenas desenhava, mas também contava histórias através de suas imagens. Cada ilustração era pensada para complementar e enriquecer a narrativa escrita, criando uma sinergia perfeita entre texto e imagem. Seu talento em criar ambientes ricos em detalhes e personagens cativantes fez com que suas obras fossem apreciadas tanto por crianças quanto por adultos.

A delicadeza de sua arte é visível em cada traço suave e meticuloso. Pascual tinha um dom especial para capturar as nuances das expressões humanas, desde o sorriso tímido de uma criança até a alegria exuberante de uma festa. Seus personagens parece ganhar vida através de olhares expressivos e gestos sutis, tornando cada página uma experiência emocional rica e envolvente.

A artistas geralmente trabalhava com guache ou com tinta acrílica e fazia um inteligente uso das cores. Ela sabia como harmonizar paletas vibrantes e pasteis para criar atmosferas encantadoras que acolhem o leitor. As cores não são meramente decorativas, mas elementos essenciais que ajudam a contar a história, conferindo profundidade e emoção a cada cena. A escolha cuidadosa das tonalidades transforma cada ilustração em uma verdadeira obra de arte, onde luz e sombra dançam em perfeita sincronia.

Embora a ilustração infantil tenha se desenvolvido para explorar temas mais inclusivos e artisticamente diversos, o legado de Pascual e sua arte não pode, e nem deve, ser apagado. É de suma importância entender que essas ilustrações fazem parte do canone da literatura infantil, tal qual como o estilo Whimiscal de Beatrix Potter, inspirando diversos artistas ao redor do globo. Suas ilustrações ainda são reimpressas e admiradas por novos leitores, e suas contribuições para a arte da ilustração infantil são frequentemente celebradas em exposições e publicações especializadas. Pascual deixou um impacto indelével no coração de todos aqueles que tiveram a sorte de folhear um livro ilustrado por ela.

Em um mundo onde a tecnologia muitas vezes toma o lugar das formas tradicionais de arte, as ilustrações de María Pascual nos lembram da beleza e da simplicidade do desenho manual. Elas nos convidam a redescobrir o prazer de folhear páginas de um livro, a nos perder nas cores e formas que compõem suas histórias e a valorizar o talento daqueles que dedicam suas vidas a criar arte para os olhos e a alma.

María Pascual é, sem dúvida, uma das grandes mestras da ilustração infantil. Sua habilidade em trazer sonhos à vida através de seus desenhos continuará a inspirar e encantar gerações futuras. Se você ainda não conhece o trabalho desta incrível artista, convido-o a mergulhar no mundo mágico de María Pascual e deixar-se levar por sua arte encantadora.



https://en.wikipedia.org/wiki/Maria_Pascual_Alberich

https://www.instagram.com/mariapascualart/


Novelas

um desastre chamado classe 406, uma retrospectiva

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Classe 406 é mais uma das obras juvenis de Pedro Damían, sucedendo dois sucessos estrondosos de Damian, Amor a Mil Por Hora e Amigas e Rivais, e sendo sucedida por Rebelde, a trama figura como a sombra do primeiro fracasso do autor, que até então, só colecionava hits. A novela vendia-se como série, sendo dividida em temporadas e prometia ser um trabalho vanguardista - o de certa forma pode ser que tenha sido. 

A trama gira em torno de um professor, Francisco (Jorge Poza), que se muda pra Cidade do México, após receber a tarefa de lecionar na pior escola da metrópole, uma instituição agregadora de jovens rebeldes e complicados demais. Lá ele terá contato com os piores tipos de jovens, que inicialmente ele repudia, por suas controversas, mas com a ajuda da psicóloga Adriana (Alejandra Barros) que visa reestruturar esses jovens, lentamente vai conseguindo se adaptar àquele caótico universo. No meio disso, três jovens, melhores amigas, servem como pano de fundo pra trama principal. Gabriela (Sherlyn González), Marcela (Dulce Maria) e Madalena (Irán Castillo), servem conflitos complicados de tecer e de se digerir.





Uma grande problemática: 

Gabriela, que é muito pura e ingênua, vive um flerte com o desordeiro Fercho (Christian Chávez), mas em uma festa depois de embebedá-la, o rapaz abusa sexualmente da moça, que fora de si, não consegue perceber com clareza o que de fato aconteceu. O plano fazia parte de uma aposta  do rapaz com seus colegas para tirar a virgindade da moça. Daí em diante vemos a personagem se apaixonar pelo homem que a estuprou, manter um vínculo com ele e o pior, acusando o cara errado por seu infortúnio, nesta ocasião o personagem Thales, vivido por Kuno Becker. Para piorar, Gabriela se descobre grávida e decide realizar um aborto, sendo julgada por todo à sua volta, sendo que mais tarde a mocinha começa lentamente a perceber e encontrar provas da verdadeira identidade de seu agressor, que neste ponto se apaixonou pela sua vítima. 

Depois dos panos limpos, Damían tenta, inutilmente, regenerar Fercho, através de sessões de terapia com Adriana, que esmiúça sua vida marcada por violência fraternal e abusos familiares; contudo, o público não compra a ideia e, não para menos, rejeita não apenas o casal, mas também a mocinha. Mais tarde, a direção ainda tenta criar um clima entre Gabriela e Enrique (Aaron Díaz), irmão de Marcela e crush de sua melhor amiga, Madalena, mas não rol química. 

Tocar em temas polêmicos como estupro e aborto, desencantou o público, que a partir daí começou a negar a trama, e com razão. Gabriela, apesar da fragilidade típica da mocinha mexicana, não tinha química com nenhum personagem, e o único que tinha, era na verdade seu agressor. Resultado: a mocinha passou o restante da primeira temporada apagada, sendo posteriormente, vítima dos ataques de uma Madalena enciumada e disposta a estragar qualquer interação - sem química - entre Enrique e ela.



 

Uma personagem complicada demais: 

Por falar em Madalena, talvez seja esta personagem a maior vítima deste caos todo. Madalena, que era a mais periférica das amigas, além de cometer furtos e agredir outras alunas, atuava em atos criminosos, como: vender drogas aos outras alunos e participar de gangues de bairro. A personagem passa metade da primeira temporada sendo uma pedra no sapato do professor Francisco, por isso não tem tempo pra desenvolver seu crush por Enrique, que só será lembrado pra movimentar a trama na reta final da primeira temporada. Próximo de sua sentença final, Madalena perde a mãe num tiroteio, torna-se insuportável e mimada de uma hora pra outra e assalta uma velha. Resultado: a personagem é morta sem mais nem menos, livrando a trama de seus dramas trágicos.

Madalena, com toda certeza era pra ser a personagem mais interessante de tudo isto, mas conseguiu ser a mais complicada. É nítido que ninguém estava preparado pra lidar com essas questões, do roteiro à direção. Ao contrário do que se pretendia, achou-se mais fácil matar a personagem do que tentar resolver seus problemas. A verdade é que este desfecho causou muita dor de cabeça para Damían, já que Irán teria ficado chateada com a decisão, motivando uma revolta nos bastidores, apoiada por diversos atores da trama. Aqueles que apoiaram a movimentação até o fim também foram demitidos, como é o caso de Karla Kosso, que interpretava Sandra, personagem lésbica. Contudo, após haver apaziguação, Karla volta para a quarta temporada. A zona não para por aí:




Um casal interessante, mas a trama não colaborou: 

Marcela, que das três protagonistas é a que carrega o discurso, lívido, feminista, promete não se apaixonar, mas acaba tendo uma paixão imediata pelo bobão Juan (Alfonso Herrera). O casal tinha muita química, e era o que prendia a - valente - audiência que ainda permanecia. Contudo, Damían, dá um tiro no próprio pé ao revelar que o personagem traiu a personagem com Marina (Ana Layveska) e ainda por cima a engravidou. Marina, agora grávida decide ficar com a criança e esconder a traição de Marcela. Contudo, quando seu irmão Esteban, vivido por Sebástian Rulli, descobre tudo, arma uma emboscada pra dar um susto em Juan, que acaba resultando num acidente onde Juan termina por perder a memória (?). Este foi o artifício de roteiro pra esticar esta trama, que já se encontrava marasmo. A partir disto se acompanha o entediante dilema de Marina: contar ou não contar que está gravida de Juan. 

O público torceu o nariz, óbvio. O casal que deveria ser o principal ponto romântico da trama, passa quase toda a primeira temporada desfigurado. O telespectador tem de acompanhar o drama sem sentido de Marcela sofrendo pelo sumiço desnecessário de seu amado, e quando ele volta, Marina decide contar tudo, fazendo o relacionamento entrar noutro marasmo. Pra piorar, Marina sofre um aborto espontâneo, por causa de uma grave anemia, que vai resultar numa barriga (maior do que a personagem ostentou enquanto grávida), na segunda temporada. 

O fim da primeira temporada não poderia ter sido mais bagunçado e indesejado. A segunda temporada, que foi bem menor, se arrastou, guerreira, penando resquícios do que ficou mal resolvido ente Juan e Marcela e escorando-se na doença de Marina. O professor e a psicóloga? Ninguém viu e quem viu, desviu. Quem também perde importância total é a pobre Gabriela, que virou figurante de corredor em diversos capítulos. Mas ainda havia solução.




A entrega de vez ao folhetim

Desde a primeira temporada, Michele Vieth vivia a típica e insuportável "bitch basic", arquétipo comum nas novelas de Damían. À sombra, aparecia de vez em quando falando de um namorado que lhe dava presentes caros - e roubados -, que era mais velho e mais legal. Depois que ele também é morto (no mesmo evento que também sentencia Madalena), Nádia arruma um suggar daddy, na segunda temporada pra bancar seus luxos, sendo que numa desta, o velho acaba morrendo num motel barato, após abusar do Viagra. Nádia é exposta e todos, inclusive sua família, descobrem sua verdadeira profissão. A personagem contará com o apoio emocional de outro professor, Santiago (Francisco Gatorno), personagem até então coadjuvante, que nesta altura se vê num casamento desgastado. Os dois passarão a ter um caso, proibido e intenso que chamará a atenção do público no final da segunda temporada, que fica sedento pra saber de todos vão descobrir, mais uma vez, os podres de Nádia. 




Com advento da terceira temporada, a trama parece ter sido finalmente colocada no lugar. A chegada da personagem Jéssica, interpretada por Anahí, foi a cereja do bolo pra atrair de vez o público e consolidar a audiência da trama de vez. Após ser castigada pelos pais, por causa de seu comportamento subversivo, Jéssica é obrigada a frequentar a fatídica escola onde Classe 406 se passa. A trama se entrega de vez ao folhetim, permitindo-se ser novela, quando insere essa típica vilã de novelas na trama. Anahí com toda a sua carisma, e crescente fandom, já que nesta fase era o nome teen mais importante do país, conquista a todos, tornando-se a protagonista da trama. Sua obsessão por Santiago, que começa num dia em que ele acaba transando com a personagem sem saber que ela seria sua aluna, é o mote central desta fase e que leva a personagem a aprontar todo tipo de vilania. Fashion, sarcástica, sensual, biscoiteira, irônica e principalmente fora de tom. Após ser rejeitada pelo professor, a aluna expõe seu caso com Nádia, que a esta altura do campeonato ninguém se importava mais, já que instantaneamente Jéssica e Enrique assumem uma química eletrizante, tornando-se o casal favorito do público. 


Uma quarta temporada explorando os dramas deste casal se resulta, onde Jéssica diagnosticada com transtorno borderline, passa por uma jornada de redenção, à medida que precisa se provar uma boa pessoa e manter a boa compostura. 




É interessante perceber que quando Classe 406 se reconhece como uma novela é que, enfim, se estabiliza. É inclusive desta fase os milhares de gifs de Anahí reproduzidos a rodo pela internet. Claro que a escolha de Anahí para interpretar Jéssica foi uma interessante jogada de marketing. Além de gozar de uma gigante popularidade no México, e consequentemente tudo que ela fizesse resultaria em sucesso; a atriz abraçou o tom necessário pra salvar a trama e a carreira de Pedro, afinal não posso afirmar com certeza se a Televisa aceitaria Rebelde se Classe 406 se consolidasse como um fracasso.  

Embora Classe 406 nunca tenha ganhado uma reprise, reforçando antipatia da emissora pela obra, esta se tornou a obra mais emblemática de Damían. Mostrando-se como um passo perigoso na noite escura, ousou à sua época por abordar temas considerados tabus pela massa conservadora que consumia televisa. Contudo, quando se caminha no escuro, pode-se cair, e foi exatamente isso que aconteceu, Classe 406 derrubou o horário e quase derrubou junto a credibilidade de Damían, no entanto, sempre é possível se reerguer, e isso também aconteceu. 





Cinema

Um texto, ou análise, sobre a fragmentação da personalidade em Cisne Negro

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o lago dos cisnes e o cisne negro, uma breve introdução 

Em fevereiro de 1877, Tchaikovsky mostrou-nos pela primeira vez, no teatro Bolshoi em Moscou, seu Magnum Opus, Lago dos Cisnes: Op. 20., em um espetáculo dramático, melancólico, trágico e shakespeariano.¹  A suíte foi criada a partir de contos populares russos e alemães² e conta a história de Odette, uma princesa aprisionada na figura de um cisne pela maldição de um feiticeiro malvado, Rothbart. A maldição, porém, dura apenas em quanto houver raiar de sol, o que significa que durante o período da noite, Odete se transmuta em sua forma humana novamente. Para que seu infortúnio fosse finalmente cessado, era necessário que um admirador lhe declarasse amor e fidelidade. E, caso fosse traída, Odete permaneceria para sempre como um cisne. Numa tarde, após ser vítima de uma perseguição por parte de um príncipe, chamado Siegfried, Odete se revela, explicando sua condição, e encantado com a beleza de Odete, Siegfried promete quebrar o feitiço. Entretanto, ao descobrir o contratempo, transforme sua filha Odile, o cisne negro, em uma cópia perfeita de Odete, dessa forma confundindo o príncipe, que enganado, declara amor e fidelidade a Odile. Diante da sua condição, agora irremediável pela traição de seu amado, Odete decide se matar jogando-se no lago, para por fim em seu martírio, Siegfried, na esperança de viver ao lado de sua amada, na vida após a morte, faz o mesmo. 

O lago dos cisnes, ao longo do tempo recebeu diversas adaptações, inclusive aquela icônica da Barbie, mas talvez a mais emblemática e memorável de todas tenha sido O Cisne Negro, de 2011, dirigido por Darren Aronofsky, que recontou-nos o conto a partir de uma perspectiva completamente diferente.



Nina, a pessoa perfeita para viver Odete

Cisne Negro tem como protagonista Nina, interpretada por Natalie Portman. Nina embora já seja uma adulta, comporta-se de maneira infantilizada e imatura. Tímida, extremamente dócil, meiga e que por vezes assume uma postura frígida, zelando pela pureza da sua essência. Nina, ao que nos é mostrado, tem como objetivo maior, se tornar uma bailarina perfeita.

A personagem, quase que instintivamente, preserva uma natureza ingênua, sem nenhuma malícia e porque não, romântica. Nina, assim como Odete é o estereótipo perfeito que uma protagonista de conto de fadas exige. Mas, há uma grande diferença entre ambas: Odete foi criada para ser assim, a protagonista perfeita de conto de fadas; já Nina estava constantemente se apropriando deste papel, porque novamente, seu objetivo de vida era ser a bailarina perfeita, bailarina perfeita para interpretar Odete, por conseguinte, a Odete perfeita. 

Sua mãe, Erica (Barbara Hershey), é a principal responsável por sua extrema infantilização. É possível notar, em diversos momentos do longa, Erica adotando uma postura super protetora que, tem por finalidade reforçar a fragilidade de sua filha. Prova disto é a decoração, extremamente infantil, do quarto de Nina. Um predomínio da cor rosa, associada à pureza e infância, ursos de pelúcia, entre outros detalhes. Inclusive é até difícil de acreditar que a personagem tem 28 anos.

Alimentando continuamente esta postura, Nina abdica e nega de outros comportamentos naturais do ser humano. Portanto raiva, desejo, sensualidade, e outros, todos são cindidos. Todo este lado interditado, toda esta barreira, funcionam como um feitiço. Portanto, Nina, por desejo de sua própria mãe, não teve a oportunidade de crescer, ficando presa na casca de uma menina, cativa de uma figura que lhe foi imposta, assim como Odete, tendo seu desejos e vontades interditados, enclausurados num cárcere psíquico. Devido a isso, Nina nunca experimentou a liberdade de expressar-se de maneira honesta, em outras palavras, de ser ela mesma.


Nina, o reflexo das exceptivas pessoais de sua mãe

Quando tornou-se mãe, Erica era muito jovem, e por este motivo teve que deixar sua carreira, de bailarina em ascensão e, sentindo-se cansada e frustrada para recomeçar, dedicou-se única exclusivamente na tarefa de cuidar de sua filha. Desta forma, o nascimento de Nina pode ser interpretado como a morte da carreira da mãe. Como consequência, a protagonista vive dominada por uma mãe controladora, da qual além de definir como deve ser a sua postura e comportamento, é intrusiva e invejosa. O desejo de Erica é tornar Nina, em tudo aquilo que ela não pôde ser. Seu comportamento super protetor, anteriormente destacado, conforme avança o filme toma um caráter sufocante, que mais fala sobre rejeição do que sobre cuidado. e se, antes esta atitude impedia que Nina tivesse alguma individualidade, agora reprime qualquer traço individual que nela possa vir a despertar.

Nota-se nesse contexto familiar, a ausência de um espaço em que seja possível o estabelecimento de laços sociais de confiança, em que a protagonista possa falar e se manifestar, seja através da expressão dos sentimentos, seja através do desenvolvimento gradual de atitudes por parte da mãe que viesse corroborar para a inserção de “Nina” no universo adulto. A genitora, mantém com  atitudes infantis como forma desta não sair do seu controle, sempre num processo de manipulação. Nessa relação entre mãe e filha era preciso sentir sentimentos de angústia e alívio, que segundo Lamb (1981) considera a sequência de angústia e alívio especialmente merecedora de atenção por causa das oportunidades que ela oferece de importantes episódios de aprendizado social. No enredo do filme, percebe-se uma ausência desse sentimento, onde só é construída uma interação social apenas entre mãe e filha sem que se viva as frustrações naturais de ganho e perda que a vida possa oferecer.  Nina não consegue integrar e não consegue por estar fundida à sua mãe, numa corrente de amor e ódio.

Portanto, se alguém me perguntar do que exatamente se trata Cisne Negro, eu diria que o longa reporta a história de uma mãe frustrada, que coloca suas expectativas de vida projetando-se para a filha. Emoções e sentimentos são projetados de forma reprimida, em torno de um sonho da filha, em se transformar uma famosa bailarina.


Nina e dualidade: Odete e Odile em um só corpo

Pressionada por uma mãe que abdicou da própria carreira em prol de criá-la, a personagem, como que pra pagar o sacrifício de sua mãe, não se permite cometer erros e foca todas a sua energia e disposição na sua tenra carreira. Nina passa horas treinando, dedicando-se de maneira exemplar e rigorosa.

Ao ser escalada para o papel de Odete, Nina acredita ter capacidade de entregar uma performance maravilhosa e, sentindo-se honrada não pretende estragar ou perder a oportunidade que há muito esperava. Como possuí as mesma características - e personalidade - de Odete, Nina consegue interpretá-la com maestria e perfeição. O desafio, porém, surge quando Nina precisa interpretar Odile, que é o total oposto de Odete: maliciosa, sensual e meticulosa. O diretor responsável pelo espetáculo, Thomas (Vicent Cassel), tem noção do potencial de Nina, por isso a escalou para o papel. Contudo, Thomaz não somente deseja que ela represente o Cisne Negro, mas que se torne ele também.

Entretanto, Nina não consegue performar com a sensualidade que a personagem exige. Thomaz, que a instiga das mais variadas formas, a seduz para que ela se transforme em Odile, porém, reticente, ela se sente culpada todas às vezes em que precisa demonstrar alguma sensualidade, mesmo que maneira íntima, como na cena da masturbação. Pressionada, a personagem começa a questionar a sua capacidade, cobrando de si mesma um comportamento oposto, esforçando-se demasiadamente e sendo assim se estressando cada vez mais e mais.

Como se sua falta de adequação ao personagem já não fosse o suficiente, o medo de perder o papel pra sua colega de trabalho Lily (Mila Kunis), que conseguia interpretar Odile, perfeitamente, lhe causa um sofrimento psicológico descomunal. Lily é sedutora. Não por ser, necessariamente, sensual e provocativa, mas por ser o total oposto de Nina. É tudo o que ela não é e precisa ser. 


Nina, num processo de descaracterização 

A protagonista já possuía uma mente instável. Paranoica e obcecada pela perfeição, além de apresentar outros distúrbios como: automutilação, bulimia e anorexia, distorção da própria imagem, disformia corporal que, diante de devaneios, pareciam apenas metáforas para sua transformação em Cisne Negro, quando na verdade eram reais.

A pressão do diretor, os ensaios árduos e exaustivos, o medo de ser substituída a qualquer momento, a mãe que, ao perceber a deterioração da filha, tenta privá-la do balé e o ambiente de competição e tensão, alimentado por Thomaz,  se transformam em condições sufocantes demais, causando diversos transtornos em sua mente e seu lado reprimido acaba se personificando em uma segunda personalidade incontrolável e antagônica. Esse duplo, que é complexo demais pra que ela consiga lidar, será reprimido pela protagonista e projetado na pessoa de sua rival, Lily. Sendo assim, cada vez que se sente inapropriada para o papel de Odile, Nina projeta raiva e inveja sobre a figura de Lily, da qual também admira por conseguir ser o que ela não é. Essa situação vai criar um mix de sentimentos e sensações antes não explorados, chegando aos extremos de fantasiar-se tento uma experiência sexual com a colega. O sexo neste momento se demonstra como o auge desse controverso fascínio, justamente por ser algo que Nina considerava como subversivo, mas ainda assim, desejável.

Essas fantasias evocavam na personagem, além da necessidade de novas experiências, a emoção - e também a vontade - de ser alguém completamente diferente, ou de se libertar finalmente aquela personalidade reprimida, da qual lentamente está tomando conta do corpo de Nina. O que se vê a partir daí é um intenso processo de fragmentação da personagem, que nesta altura, já não suporta mais esconder a sua outra face, o seu outro lado. Daren, reforça a percepção alterada da realidade de Nina, a partir da segunda metade, com o uso constante de espelhos. Os reflexos que vemos são muitas vezes enganosos e parecem ter vida própria. Desta forma, fica evidente que a persona alternativa de Nina, está ganhando autonomia e começando a agir independentemente.


Odete transmuta-se, por fim em Odile

No apogeu da sua metamorfose, no dia da grande apresentação, Nina comete uma falha devastadora enquanto performava o Cisne Branco. Sentindo uma enorme culpa e imaginando-se já arruinada, desconta sua raiva brigando com Lily no camarim e no ápice do confronto, intencionalmente mata a colega. Como sua preocupação com o espetáculo é maior do que qualquer sendo de moral, a bailarina retorna aos palcos sem se importar, agora totalmente transformada em Cisne Negro, e realiza uma apresentação com um desempenho transcendental. Seus movimentos são fluídos e hipnotizantes, sua pele exalta a sensualidade necessária e seu olhar é própria definição da malícia. Nina, alcança a perfeição, não como Odete, mas como Odile. Nina não errou os passos de Odete por puro acaso, mas porque já não era mais o Cisne Branco.

Contudo, preparando-se para o ato final, a personagem, percebe que, na verdade não havia matado Lily e sim ela mesma, afinal ela era a única coisa em seu próprio caminho. Quando Nina, retorna ao palco para performar a morte do Cisne Branco, está ferida, já que havia deferido um golpe contra si mesma. E num final tão dramático, trágico e shakespeariano quanto o de Lago dos Cisnes, Nina mata o cisne branco, tornando-se o cisne negro, ela mata Odete e tornar-se Odile, ela mata seu antigo eu, e transmuta-se em uma Nina perfeita., digna de todas as salvas de palmas. Esta cena pode ser interpretada de várias formas, num mais, não necessariamente Nina morre, mas sim a antiga Nina, a Odete.

Percebe-se assim, que o enredo do filme “Cisne Negro” vincula-se a uma dissociação da personalidade, que nos permite atrelamos aos estudos de Bowlby (2009), na perspectiva do apego, que nos diz: ser um sistema afetivo que tem proximidade como previsível. É visto como uma classe de comportamento social e ocorre quando são ativados certos sistemas comportamentais para pessoas essenciais. Esta ativação é processada por sistemas reguladores de segurança mediante a uma situação de estresse que exige uma postura de defesa. Nina, ao perceber que poderia ser substituída e que poderia não ser a mais perfeita entre todos não poupou esforços para descascar-se e transformar-se numa outra persona. 

O estigma da perfeição também perseguia Tchaikovsky; um outro

Tchaikovsky, de acordo com suas biografias, sempre demonstrou muita aptidão e talento para música. Sua música, alegórica e cheias de elemento surpresas, se destacavam das outras criadas pelos seus contemporâneos. Sempre com um teatral e performático, Tchaikovsky se destacou compondo grandes peças de sucesso para o balé clássico. Mas não quaisquer peças de balé clássico, e sim as mais importantes peças da história do balé enquanto arte. Lago dos Cisnes de 1877, A Bela Adormecida de 1890, e O Quebra Nozes de 1892.

Contudo, uma de suas maiores obras, O Quebra Nozes, foi alvo de seu desgosto e reprovação. Primeiro, porque a obra não foi um grande sucesso, obtendo muitas críticas por não ser fiel ao livro; segundo, porque Tchaikovsky detestou o que ele havia produzido ali. A verdade é que ele se sentia alheio à aquele projeto. A ideia de transformar o livro de Amadeus Hoffman (1776-1892), partiu dos coreógrafos Marius Pepita e Lev Ivanov, com base na adaptação de Alexandre Dumas (1802 - 1870). Nesse sentido, o controle criativo não estava exatamente sob as mãos de Tchaikovsky. Em uma de suas muitas reclamações sobre o processo criativo da suíte, o compositor disse não ter liberdade criativa sobre as partituras, que tinham de ser criadas em cima dos movimentos criados pela dupla de coreógrafos. Quando o resultado final se deu, a postura de Tchaikovsky não poderia ter sido outra: crítica e decepcionada.  Tchaikovsky chegou a dizer que se tivesse feito isso sozinho, o resultado seria mais agradável. 

Mas, sinceramente eu começo a me questionar sobre: o quanto disso não era sobre o ego do compositor? E eu não estou falando sobre o fato de O Quebra Nozes não ter conseguido o retorno esperado, já que anos antes, Lago dos Cisnes teve uma estreia desastrosa e Tchaikovsky morreu acreditando que este era seu maior fracasso³, quando na verdade se trata da peça de balé mais memorável e reproduzida de todos os tempos; status que a peça somente alcançaria depois de uma segunda montagem, encenada em São Petersburgo em 1895, reformulada justamente por Pepita e Ivanov. Mesmo com o fracasso comercial de Lago dos Cisnes, o compositor via-se extremamente satisfeito com o resultado final. Tchaikovsky, não gostava de O Quebra Nozes porque não era a cabeça por de trás daquele projeto, não o considerava como sendo algo genuinamente seu, não continha a sua assinatura e enxergava-o como limitado, não conseguia se ver como o criador, ou o único artista, por de trás daquele espetáculo natalino; e por isso aquela peça não era perfeita aos olhos. Não havia naqueles acordes sua total entrega, não havia naquelas partituras a totalidade da sua dedicação. Para ele isso era suficiente pra reduzir O Quebra Nozes em uma suíte anêmica, não tão interessante e defeituosa. 


fontes:

https://en.wikipedia.org/wiki/The_White_Duck

https://www.historyhit.com/1877-disastrous-premiere-tchaikovskys-swan-lake/

https://www.britannica.com/biography/Pyotr-Ilyich-Tchaikovsky

Cinema

a perca da individualidade, a fragmentação da personalidade e a identidade em Perfect Blue

18:12

Perfect Blue, lançado em 1997 é mais uma das obras de alto escalão do diretor japonês Satochi Kon. Muita gente acha que Perfect Blue é um filme confuso, mas na verdade ele é um filme que nos faz ficar confusos.


Em um breve resumo, o longa acompanha Mima, uma idol membro um girlband em ascensão, tentando dar um novo passo em sua carreira, abandonando o grupo em seu auge para tentar se tornar uma atriz. Mima aparenta gostar do que faz, porém a partir de decisões do gerente da agência da qual faz parte ela é encaminhada para o setor da atuação, onde seu rendimento seria mais lucrativo e a sua carreira ganharia um status menos efêmero. O problema, é que esta repentina mudança, que nem partiu de Mima, causa revolta na maioria dos seus fãs e um deles em específico começa a persegui-la e enviar mensagens ameaçadoras, que a princípio ela decide ignorar, mas quando este passa a ser o principal suspeito de uma série de assassinatos envolvendo pessoas próximas a ela, que contribuíram pra sua mudança artística, a personagem percebe-se cada vez mais atrelada a uma conspiração que tem como finalidade máxima mostrar-lhe o seu verdadeiro Eu. 

O que significa ser uma idol?

Num primeiro momento, Mima consegue conciliar sua vida pessoal à sua carreira de maneira eficiente. Pode-se dizer que a sua relação com a fama e o olhar alheio é até um pouco saudável, visto que em geral os idolos japoneses, em especial as mulheres mudam drasticamente a sua vida pessoal em prol de agradar um público que as idealiza de uma maneira puritana. 

Momoe Yamaguchi, à esquerda e Mariya Tekeuchi à direita 

Se voltarmos nosso olhar pra exemplos reais de idols japonesas, das décadas anteriores, poderemos perceber com mais clareza essa idealização. O exemplo mais ilustrativo sem sombra de dúvidas é a carreira de Momoe Yamaguchi. Considerada a primeira idol, surgindo em meados dos anos 60, Yamaguchi nos palcos era uma interprete brilhante, mas em sua vida pessoal performava o papel de "girl next door", sempre tão ingênua, gentil e pura. Depois de 10 anos de carreira, em 1979 Yamaguchi, com apenas 30 anos, abandonou sua carreira para se casar, com um também idol, e se tornar mãe e dona do lar. Esse gesto foi visto como virtuoso e cheio de valor. Na época de Yamaguchi, as agências de idols ainda não existiam, e por isso é corretor afirmar que ela foi um esboço pro quê viria a ser a indústria pop japonesa que veríamos nos anos 80. Yamaguchi não era dona de sua própria carreira, não compunha suas canções, não as produzia e muito menos decidia o que ia ou que não ia cantar. Ela era uma marionete nas mãos da sua gravadora.

Em contraste, havia Mariya Tekeuchi (sim a dona do hit Plastic Love), que por sua vez era compositora e produtora de toda a sua discografia, mas esta nunca foi considerada uma idol, pela massa e pela mídia. Seu controle criativo e seu comportamento desconcertado, não considerado o mais correto para uma estrela do mercado fonográfico japonês. A comprovação disso se deu quando em 1985, cinco anos depois de casada, ela inesperadamente retomou a carreira para um dos seus momentos mais brilhantes. Como resultado, Takeuchi era constantemente boicotada pelos veículos de comunicação. Apesar do imensurável sucesso nas rádios, quase não era chamada pra performar nos programas de TV ou raramente via-se estampando uma capa de revista. Portanto, quando as primeiras agências de idols começaram a surgir, por volta de 1978, não havia interesse por parte das gravadoras em artistas que pudessem produzir ou compor, já que estas não seriam facilmente manipuladas. Então ao invés de serem lidas como idols, essas artistas mais autênticas eram chamadas pra compor ou produzir os hits das artistas por eles fabricadas. A própria Takeuchi foi uma ávida criadora de hits pra nomes como: Seiko Matsuda, Akina Nakamori e Yukiko Okada. 

Da esquerda para a direita, Seiko Matsuda, Yukiko Okada e Akina Nakamori

Por falar em Okada, vale lembrar o seu trágico fim, aos 18 anos (pretendo fazer um post aqui apenas falando só sobre isso), que não suportando a pressão de ter sua vida exposta de maneira tão insensível cometeu um suicídio na manhã de 8 de abril de 1986. Pode parecer um caso um isolado, mas mesmo Nakamori, que embora, mesmo com aquele semblante tristonho parecia ter uma vida Idol Perfeita, em 1989 tentou acabar consigo mesma, depois de um longo processo de recuperação da anorexia causada por críticas dos fãs e da mídia em detrimento de seu corpo não tão magro. O incidente gerou antipatia e profunda rejeição pela princesa do J-pop, que só iria conseguir recuperar o status anos mais tarde.

Ser uma idol é seguir um padrão de vida, comportamento, corpo e pensamento totalmente regrado e extremamente controlado pelas pessoas que estão atrás da sua carreira. Mas este padrão não é o mesmo usado pelas divas pop ocidentais, que vendem seu corpo como atrativo máximo na sua carreira, pelo contrário, no ocidente vende-se a perfeição de uma imagem que precisa ser velada e assim mantida. É importante ter consciência disso pra que possamos entender melhor a obra de Satochi. Mima é um reflexo da imposição social que é direcionada desde sempre sobre a figura da mulher. Cujo o amadurecimento sexual é condenado em prol da espécie de uma imagem platônica que não possui nenhuma vontade considerada subversiva, ficando presa na dicotomia entre santa e puta. 


tudo é sobre um discrepante contraste.

Já no primeiro momento somos apresentados à atmosfera estranha de se ser uma Idol. Mima, e suas amigas, performando um número musical da maneira mais fofa e dócil que um ser humano poderia interpretar, vestidas em vestidos bufantes cheio de babado e laços, que pessoalmente me remetem à uma postura infantil, enquanto são observadas e aplaudidas por um montante de homens adultos que as fotografam de maneira quase desesperada. O que me remete ao papel da lolita e consequentemente da crescente romantização da pedofila promovida pela mídia. 

Se pararmos pra prestar atenção na letra da música, percebemos que a faixa fala sobre um estilo de vida casual. Em um determinado trecho podemos ouvir algo como: "não quero roupas de trabalho, quero me divertir a tarde toda...", mas em contraponto, temos ali três jovens vestidas como bonecas de porcelana, debaixo de um sol que parece incomodá-las, cumprindo uma agenda cansativa e servindo entretenimento aos que as assistem.  

Esta foi uma forma sutil que Satochi encontrou de nos mostrar a dualidade que a todo momento é debatida em Perfect blue, você só vai conseguir perceber ao se compenetrar na cena em questão. O mesmo, não pode ser dito na cena seguinte. Depois de assistirmos à apresentação da banda, somos bombardeados com várias cenas paralelas do cotidiano de Mima e da justaposição de imagens e cenas que compõe o mundo mundano ao glamour dos palcos. A sua vida no centro dos holofotes em contraste com seu dia a dia, na qual vai as compras ou pega um metrô como qualquer cidadão comum. E é neste momento que notamos o verdadeiro sentido de Perfect Blue.

Sim, Mima parece gostar do que faz, ela se sente acolhida entre suas amigas e feliz recebendo toda a atenção de seus fãs, mas quando Mima está sozinha, em seu íntimo, percebemos uma pessoa muito mais pacata e calma do que ela demonstra ser no palco. Diferentemente dos exageros visuais da sua persona enquanto popstar, todo o ambiente é transformado em alguma coisa aconchegantemente pessoal, desde a paleta de cores até detalhes minuciosos na organização de seu apartamento. Em seu lar, Mima parece viver outra vida, muito mais calma e você não diria que ela é uma popstar, contudo, este conforto e segurança são as primeiras coisas a serem quebradas.

a individualidade de uma popstar pertence a todos

Em meados dos anos 90 a internet estava ganhando força. Em seus primórdios o mundo virtual já se comportava como esta "terra sem lei", termo que hoje muitos costumam usar pra referir à ela. 

De um lado Britney Spears de outro Lady Di, ambas assediadas pelos paparazzi

Os artistas de um modo geral nunca conseguiram manter uma vida "privada", especialmente os artistas musicais. Suas vidas sempre foram motivo de especulações e fofocas, estampando capas de revistas, e talvez a pior consequência da fama, sendo objeto de interesse dos tão temidos paparazzi. Desde os anos 70, quando Lady Diana, tornou-se princesa, o hábito de perseguir as estrelas converteu-se em algo comum. Lady Di, que foi extremamente perseguida pelos paparazzi, teve cada detalhe de sua vida documentado, inclusive a sua morte, causada por uma perseguição de flashes e paparazzi. Talvez o exemplo mais cru desta realidade seja a própria Britney Spears, que em seu auge não conseguia dar dois passos sem ser fotografada. Eu ainda penso toda noite naquele vídeo em que sentada na calçada de seu bairro, chora pedindo um pouco paz aos paparazzi pra dar uma volta com seu cachorrinho. 

Contudo, a mídia não somente persegue as chamadas "pessoas públicas" por bel prazer, mas porque desejam saciar a fome do público sobre aqueles sujeitos. É o público, fãs ou haters, com toda a sua obsessão que motiva a o assédio da mídia. É o público que aflito por mais e mais desenvolve uma relação de poder com os artistas que podem chegar a extremos. É muito mais comum do que se imagina, que um fã se sentia prestigiado pelas conquistas de artista x, porque comprou e consumiu dele todos os materiais possíveis. Logo, é por causa dele, e de muitos outros, que aquele artista chegou onde chegou e por isso deve fazer o que ele quer, do contrário, contribuirá para sua queda. Esse pensamento resulta no que nos últimos anos temos chamados de "Stalkers", indivíduos que dedicam sua vida em prol de perseguir a vida de o outrem, geralmente pessoa da mídia. Esses stalkers costumam ser pessoas com alguma dificuldade de socialização e motivação de vida, que acabam enxergando naquela pessoa uma justificativa pra viver. Alguns stalkers podem extrapolar os limites do extremo. A cabo de exemplo temos casos como o de John Lennon, que foi morto a tiros pelo fã M. David Chapman, ou quando Ricardo López entendeu que jamais seria o homem perfeito para Björk e decidiu matá-la, e também suicidar-se, enviando uma bomba de ácido para a cantora, que conseguiu ser salva a tempo - ainda bem.


E este é um dos pontos mais interessantes de Perfect Blue. A quebra da individualidade. É no conforto de seu quarto, naquele cômodo aconchegante e cheio de acalento, que Mima descobre um blog de internet dedicado a ela, chamado: "O Quarto da Mima". Acontece é que, Me-Mania, a pessoa por de trás deste site se dedica em fazer postagens fingindo ser a própria Mima, descrevendo com detalhes o que ela faz no dia a dia, incluindo todos os momentos  em que gente acreditava serem totalmente pessoais e humanos da personagem.  Desde que somos apresentados pela primeira vez a Me-Mania, percebe-se que ele considera Mima uma propriedade sua. Quando a protagonista anuncia para a plateia que deixará o grupo, ela fica extremamente irritado. 

Para além disto, da segunda metade em diante, fica claro um conflito de interesses entre as pessoas direta e indiretamente relacionadas à carreira de Mima, principalmente Rumi, sua agente administrativa na carreira de ídolo pop; Tadokoro, também agente, mas na indústria cinematográfica; e Me-Mania. Todos disputam a posse da identidade Mima e tentam exercer seu poder e influência para controlá-la e explorá-la de alguma forma. Enquanto Rumi e Me-Mania desejam manter a fantasia de Mima como ídolo pop, Tadokoro está convicto de que investir na transição para uma atriz de cinema é a escolha certa.


o trágico anúncio para um processo de despersonalização 

A medida que Me-Mania começa a inventar fatos, especialmente a cerca da moral de Mima, naquele blog, a protagonista vai imergindo num mundo de incertezas. O que a gente acompanha daí pra frente é um processo sofrido de destruição da personagem. Uma destruição que é acompanhada de uma perspectiva muito clara, que não por acaso se confunde em vários momentos com a nossa: o público. 

Deste ponto em diante o filme se transforma numa paranoia constante, em que todos os momentos em que Mima se encontra sozinha, nunca estão isentos de algum foco de tensão, uma presença fantasma e um olhar opressivo, que é bem incorporado no personagem do stalker assustador Me-Mania, mas que na verdade é muito maior do que aquilo.

A pressão que a Mima sofre do fandom, o estresse dos problemas estruturais que ela enfrenta no novo trabalho como atriz, a nostalgia do sucesso como cantora pop e olhar obstinado e agoniante, fazem com que ela gradualmente desenvolva uma depressão silenciosa e mais tarde tornando-se incapaz de discernir o presente e o passado, a realidade dos sonhos e a paranoia do trabalho de atriz. 


a distorção da narrativa para uma mente distorcida  

A cena de estupro, que a protagonista precisa gravar para o dorama da qual está filmando, acaba funcionando como um dos gatilhos que prejudicam o seu discernimento e capacidade de desprendimento da ficção. Na cena ela é uma stripper, que durante uma apresentação é agredida por um grupo de homens, causando uma reviravolta dramática, tanto pra persona puritana da personagem, quanto pra imagem prévia de cantora pop. É neste momento que ela sofre uma de suas primeiras abstrações e mescla sonho e realidade. Obviamente o estupro não foi real, mas para Mima e sua vontade de seguir cantando, suas convicções e seus valores foram realmente violados. 

Desse modo, a partir deste episódio, ela fica suscetível a incorporar diversas personalidades em meio aos caos identitário. Tais aspectos narrativos são reforçados pela linguagem visual que a partir da constante presença de reflexos da protagonista, espelhos, câmeras e janelas, aborda e multiplicidade de Mima, a turbulência de sua própria imagem e olhar para si em um momento marcado pelo transtorno.

O filme é muito eficiente em criar essa atmosfera confusa em que se encontra a psique de Mima. Apoiando-se numa narrativa quebrada e numa montagem não linear, mas só a partir de um determinado ponto da trama. Muitas regras de como conduzir uma narrativa são quebradas e distorcidas. Conforme Mima vive num estado entorpecido, apático às sensações, em que a personagem desperta, mas não sabe dizer se o que estava acontecendo antes do corte era um sonho, ou se fato aconteceu; seja durante as gravações do filme, durante os ensaios. A trama da obra fictícia, da qual Mima atualmente atual, chamada "Double Bind" faz várias alusões aos problemas enfrentados por Mima, de modo que o fluxo de informações responde e confunde simultaneamente. 

O auge desse processo de fragmentação da identidade da personagem e consequentemente da realidade, culmina no assombramento perturbador da sua própria imagem. Uma versão perfeita, trajando suas "roupas de idol" e que com o tempo tenta tomar o lugar da "verdadeira Mima".

O mais curioso é a forma como esse contraste entre a Mima verdadeira e essa imagem que tenta tomar a individualidade dela, é construída. Pegando na referência de Freud, sobre o dualismo, esse: 

"outro ou duplo, parte de um elemento que está estabelecido na mente, mas se alienou dela por um processo de repressão por parte da pessoa, e que reaparece na vida adulta em momentos de conflito"

Mas, vale salientar que a outra não surge de uma repressão da própria Mima ou de um evento traumático específico, esses questionamentos a respeito da própria identidade já estão presentes desde o início do filme, claro de forma menos direta. Não se trata de uma vontade reprimida, parece-me que esta outra versão não aparece como um protesto freudiano de um lado inconsciente da personalidade de Mima, mas uma coerção que já estava presente e que tem um efeito de ameaça real, físico e não psicológico.


O azul perfeito não existe

Buadrillard, quando popularizou o termo hiper-realidade, em sua obra Simulacra and Simulation de 1981, argumenta que numa cena cultural, saturada de cópias e simulações ocorre uma mudança, onde essas imagens deixam de ser um reflexo da realidade, e inserida num contexto de capitalismo tardio "a cópia se torna algo maior do que uma abstração, ela vira algo que não precisa estar ancorado na realidade e pode efetivamente competir com ela" (BAUDRILLARD, 1981), um exemplo disto pode ser o consumo de pornografia, pois, mesmo que a pornografia não seja uma descrição realista e precisa do sexo, bem longe disso na verdade, para o consumidor a realidade do sexo se torna algo não existente. A pornografia num processo de exploração do corpo, trabalha com uma lógica de desempenho, da exposição máxima, da retirada de todo o véu possível, o que na verdade é uma negação de todo o significado do sexual, mas mesmo assim, num contexto de hiper-realidade, o sexo se torna simulação e a pornografia se torna o sexo.

Assim como no processo de sexualização e no idealização, observa-se a objetificação em benefício do consumo e do suprimento dos desejos da audiência, em grande parte masculina. Mima visivelmente não tem preparo, ou experiência e muito menos se sente confortável como atriz. Percebe-se isso na primeira cena em que precisa gravar, na qual ela possuí apenas uma fala, mas precisa repeti-la várias vezes até que seja convincente nisso. Com tudo, seu incômodo não é levado em consideração por aqueles que gerenciam a sua carreira, pois estes não visam seu bem estar, apenas o lucro. Não existe um interesse real e genuíno de explorar a carreira de Mima como atriz visando um crescimento artístico, pessoalmente gratificante, afinal ela vista apenas como um produto. Tudo o que importa é a objetificação de sua imagem. Voltando à primeira cena, aquela de Mima e suas amigas apresentando para um bando de homens portando suas câmeras, fica evidente que nenhum daqueles caras está ali pela música em si, e sim pelos atributos físicos das moças.


Perfect Blue parece desde o princípio muito preocupado com a exposição e com tipo de perspectiva e percepção que foca nos indivíduos tidos como "públicos", de forma que essa exposição vai criando uma figura bizarramente distorcida. Tudo que é pessoal, individual, tudo que é protegido por uma camada íntima e representa a verdadeira Mima é direta ou simbolicamente violado. Tornando a simulação da Mima numa materialização de uma necessidade de desempenho e do fetiche coletivo do "male-gaze" (olhar masculino), tudo que dela é, é tomado. A sensação de absoluta impotência diante desta ameaça é, de verdade, muito desconfortável. 

Em Simulacra and Simulation, Baudrillard concluí dizendo que: 

"Não existe uma forma de corrigir aquilo [...] a oposição moderna entre realidade e não realidade, não tem como ser restaurada. [...] deixa de ser um questão de reconhecer uma representação falsa da realidade, mas sim de esconder que o real, não é mais real. 

Perfect Blue se consagra como um grande clássico da história do cinema, lançado em meados dos anos 90, o filme previu com precisão de como a internet viria a se tornar um ambiente hostil, sobretudo quando se fala de figuras públicas que cada vez mais expõem suas vidas nas redes sociais para seguidores que podem a qualquer momento, voltar-se contra elas. Além disso, Perfect Blue nos faz reconhecer que idealizações fazem parte de um processo ilusório, que desumaniza o indivíduo,  entender isso é essencial para o reconhecimento do Eu e da auto aceitação. 


 

 

Anime

afinal, sobre o que Evangelion realmente é?

23:58




Lançado em 1995, Neon Genesis Evangelion é um anime que se passa após o chamado "segundo impacto", evento ocorrido quando o humano entrou em contato uma entidade chamada de Adão, no polo sul, acarretando na extinção de 50% da população. Situado no ano 2015, (o que é louco de imaginar pois já estamos em 2021) os humanos sobreviventes, descendentes da entidade nominada Lilith, tentam se defender das ameaças dos "Anjos", descendentes de Adão que poderiam causar um terceiro impacto. Para dar cabo desta função, a SEELE, organização religiosa que detém os famigerados Manuscritos do Mar Morto (1940), cria a NERVE, setor responsável pela criação dos EVA's, maquinas orgânicas imensas, que se parecem robôs, e que podem ser pilotadas somente por jovens que conseguirem atingir uma determinada taxa de sincronização com a máquina. E, tudo isso funciona como uma corrida contra, ou favor de um plano de instrumentalização humana, a destruição total das barreiros do ego, que resultaria numa grande consciência coletiva representando, desta forma, uma espécie em ascensão ao status de divindade - e porque não, a realização de objetivos pessoais de alguns personagens. 

Certo, tudo isso pode parecer um tanto quanto confuso, principalmente pra quem ainda não teve a oportunidade de assistir Evangelion, e isso também é muito confuso pra quem já viu a série, mas sinceramente, nada disso é o que realmente importa, porque nesta série, nada nunca é o que parece.




O conceito nem é tão importante assim...

Decorar todos os elementos mitológicos que Evangelion  nos apresenta, não significa absorver tudo o que a série tem a nos dizer, até porque nada disso, não é nem de longe, a prioridade. Em algum momento da trama começamos a perceber que este "culto à mitologia" é apenas um coadjuvante, para uma série de outras coisas que verdadeiramente protagonizam o enredo. 

Esse é um caminho comum na estrutura de Evangelion, as referências externas servindo como função prática pra que algo interno seja, por fim, representado. Um grande exemplo disso é a existência do Campo A.T. (ou como costumamos chamar: Campo do Terror Absoluto), que consiste numa barreira impenetrável, dentro da realidade, em que os Eva's e os Anjos podem usar tanto pra se defender, tanto pra atacar, e como consequência somente um poderia destruir o outro. Se trouxermos este conceito pra filosofia, ele nos remete ao Dilema do Ouriço, parábola escrita por Arthur Schopenhauer, em sua obra Parerga e Parapilopema, de 1851. Schopenhauer nos conta sobre ouriços que podem morrer de frio se afastarem-se demais uns dos outros, contudo se machucam com os espinhos uns dos outros quando se aproximam demais. Esse é o subtexto filosófico por de trás do campo A.T.. 

Essa barreira é definida por Kaworu, como sendo "a barreira que todos têm em seus corações". Pode parecer raso, entretanto o campo A.T. ou Dilema do Ouriço resultam exatamente nisto mesmo: a ideia de quando a gente se fecha, podemos machucar os outros, mas quê quando nos abrimos, podemos acabar nos machucando. E sim, estou falando do sentido emocional mesmo, sentido este que todo mundo pode entender e se identificar; sendo que no final das contas é sobre isso que Evangelion verdadeiramente está buscando responder.

Pra mim, é muito preciosismo tentar levantar barreiras de uma suposta intelectualidade super complexa por de trás da obra, quase como se fosse necessário se valer disso pra provar a qualidade do anime num ato soberbo e pseudo cult, no que acaba afastando o público mais casual, como se ele não merecesse o que Evangelion tem a oferecer, quando na verdade nem mesmo a série se leva tão a sério.



E é isso, no máximo o que pode parecer complicado demais em Evangelion é a sua roupagem, o conceito, os termos, mas na real, elas não realmente não importam nem um pouco. A prova disso se dá quando em momento algum o anime não tenta se explicar. Sim existem as informações sobre como por exemplo as sementes de Adão e Lililth vieram parar aqui na terra, mas isso nem é discutido ao longo dos capítulos.

É interessante salientar que apesar disto, nada aqui é meramente posto por puro charme ou pra embutir o status de cult, pelo contrário, todos os conceitos são cuidadosamente bem posicionados, de forma até menos óbvia do que poderia, e eles se valem dentro da narrativa

É tudo sobre relações humanas

Não por acaso o cabo que energia dos Eva's, literalmente se chama "cordão umbilical" e sem ele essas máquinas não conseguem funcionar por mais de 5 minutos. Questões a respeito das ligações familiares são universais e estão em quase todas as obras que existem, mas o que move a série são os conflitos humanos que qualquer um de nós podemos ter. 

O anime faz questão de jogar isso na nossa cara sempre e sempre, claro, de maneira sutil, mas faz. Talvez o maior exemplo disso seja o de quando os personagens não recorrentes da SEELE, que só existem pra dar andamento na trama, são subitamente substituídos, sem explicação alguma, por monólitos inteligentes e isso não faz diferença alguma pra história.

Entender a referência, a parte externa é focar apenas numa parte não muito significativa de tudo que o anime representa e que provavelmente é a menos importante. A verdade é que a pessoa que assistiu Evangelion e não conseguiu captar todas as referências bíblicas, a parte filosófica mais teórica ou em todos os aspectos tecnológicos, esta pessoa não necessariamente não entendeu o anime. Mesmo no arco da instrumentalização humana, que ocorre da segunda metade em diante, sendo um dos pontos mais importantes da trama e que evoca grandes questões filosóficas sobre convívio e sociedade, subjetivamente está ali com a função de levantar uma única grande questão: Eu como indivíduo, tenho valor? 



No fundo todos estamos sozinhos, exaustos e interpretando personagens

No meio de toda a empolgação de monstros e robôs gigantes, fortalezas subterrâneas e o destino da humanidade em risco, o Shinji é a pessoa que olha pra tudo isso e diz: não, eu não quero fazer parte dessa coisa. Como um garoto que é rejeitado pelo pai e que sente-se carente do calor materno, a uma passo que instintivamente conecta qualquer presença feminina à sua volta a um papel de maternidade, é justo compreender que ser colocado constantemente em locais e situações de risco, não é uma coisa grandiosa para ele, mesmo que isso seja em prol da humanidade. Por causa disso ele hesita incerto, ele teme vacilar e se mostra fraco, e para alguém colocado nesta posição, esse comportamento é totalmente natural.  

Os primeiros dois episódios da série se desprendem no conflito do Eu que paira sobre a sombra de Shinji. Não temos uma luta no primeiro capítulo porque Shinji precisa decidir se quer ou não pilotar aquele robô e quando a temos, no segundo capítulo, há um vazio anticlimático e inexistência de um tom vitorioso, mesmo que o Anjo tenha sido derrotado. Há uma monotonia inexplicável, quase torturante, nestes dois primeiros momentos, mas é que na verdade você está esperando algo sobre lutas de robôs e se frustra ao perceber que isso não é Evangelion. 

É comum esperarmos nos animes protagonistas energéticos, dispostos a fazer justiça e salvar o mundo mesmo que suas vidas pessoais estejam numa pairando em uma fossa de desgraças. E exatamente este o ponto. Evangelion não gosta disto. Evangelion te faz questionar como é irresponsável jogar o peso do futuro do mundo nas costas de crianças que ou são órfãs, ou passaram por algum trauma e ninguém está levando isso consideração, mesmo quando todos os personagens ao redor estão vendo o estrago psicológico que essa pressão está causando.

O Shinji é um personagem passivo, que não consegue se impor e de fato não tem muita personalidade, aliás quase nenhuma, todavia porém, mais importante do que isto, ele é complexo emocionalmente; muito diferente do estereótipo ativo e unidimensional que o homem costuma ser representado com ideais de honra, coragem e propósito. O fato de que todas as mulheres à sua volta têm muito mais ação e gerência do que ele provavelmente agrega bastante na forma como os outros personagens masculinos da trama o tratam. Shinji sente medo, não se enxerga capaz e nem merecedor do próprio lugar em que está; e o anime está muito interessado em entender de onde surgem estas questões, como também observar outras possíveis qualidades do personagem, do que entregar uma experiência menos intimista.



É evidente que Shinji não é visto como individuo, já que todos os seus conflitos são apagados. Eles nem chegam a ser desrespeitados, bem como os limites postos em cheque, porque ninguém ali se interessa por eles. Shinji está disposto em mostrá-los, mas ninguém está disposto a enxergá-los. O que eles esperam é que Shinji também negue suas questões e se torne um verdadeiro herói de anime, portando uma persona à altura, ignorando o seu Eu e suas coisas pelo outro, seja internamente pra salvar o mundo, ou externamente pra te agradar como personagem; e cara isso foi tão sagaz da parte de Hideaki. É um exercício de metalinguagem muito interessante.

Ao lançarmos um olhar sobre Gendo, pai de Shinji e diretor da NERVE, notamos que ambos são completos opostos. Nele percebe-se toda a autoridade e agressividade que se espera do garoto, talvez por isso, para a massa consumidora do anime, Gendo seja um personagem agradável, mesmo que suas motivações sejam sempre tão egoístas. Contudo, quando na reta final, vemos o personagem desmoronar, retraindo-se de sua persona corajosa, nos deparamos com um homem frustrado, fraco e extremamente vulnerável.

Não somente, Gendo, mas todos os personagens em algum momento, desmunem-se de suas personas e começam a questionar seus papeis dentro da sociedade. Acontece com a Asuka, quando ela revela toda a sua solidão parental e como estava constantemente em busca de ferramentas pra lidar com o vazio que lhe deixaram, mesmo que pra isso fosse preciso soar desesperada por atenção. Outro momento importante é quando Misato analisa suas relações amorosas fazendo um paralelo com a relação estremecida que mantinha com seu pai. De acordo com ela, tudo em seu pai era odiável e digno de reprovação, mas todos os homens com quem manteve algum tipo de laço amoroso, eram exatamente iguais ao seu pai. Isso sem falar nas diferenças entre a cientista Ritsuko e sua mãe, que mesmo nunca aparecendo paira como uma sombra em sua vida e sendo assim, ela deseja ser diferente de sua mãe em tudo. Enfim, conflitos humanos.

O mais interessante disto tudo é notar como Shinji é o único personagem não interpretando um personagem, inicialmente, mas sendo forçado a entrar em um que soe mais otimista e atrativo para o público. As pessoas, mesmo vocês telespectadores, não estão interessados no verdadeiro Eu, mas sim numa performance que agrade. Hideaki sabia disso quando criou o personagem e o criou justamente pra isso, pra incomodar o telespectador. Isso explica o fato de Shinji não ser um personagem querido. 



o preço disso tudo é perca individualidade 

Somente quando descobrimos que Gendo e seus superiores desejam secretamente fundir toda a humanidade em um único ser, com um único corpo e uma única consciência num projeto aperfeiçoamento da humanidade, é que nos fica evidente a crítica que Evangelion se propôs a fazer. Pra que isso possa acontecer, toda a sua individualidade precisa ser rompida, esquecida e renegada e como consequência, todos viveriam dentro de uma divindade que é a soma de todas as vidas humanas. E, por mais tentadora que pareça essa oportunidade, a de transmutar-se em um deus, se você parar pra analisar, vai perceber que por de trás da casca, dentro do casulo, reside uma extrema violência. Sim, porque se apagar em prol dos objetivos e quereres do outro é indescritivelmente violento.

Quando pensamos na ideia de instrumentalização da humanidade, ou o aperfeiçoamento, pensamos numa espécie de evolução, quase parecida com a que nos é apresentada em 2001, Uma Odisseia no Espaço, (1969) em que o humano se transforma numa consciência para além do simples entender da raça. Contudo, isso não é uma coisa boa, porque no momento em que o humano deixa de ser por si, ele passa a ser pelo outro ele já não mais existe. No contexto de Evangelion, quando toda a humanidade se converter nesta magnânima, mesmo no status de divindade, ainda assim estará sendo porque este era o desejo daqueles executivos da SEELE. 

Hideaki, provavelmente se inspirou na obra de Cordwainer Smith, autor de Instrumentality Of Mankind, uma outra obra de ficção científica em que retrata um mundo onde os humanos têm suas individualidades roubadas. 

Despersonalização

Na metade do século XIX, o psiquiatra francês Jean-Étienne Dominique Esquirol, recebeu uma carta desesperada de um de seus pacientes. Nesta carta, o paciente reclamava de sintomas que chamaram a atenção do médico. O trecho:

"cada um dos meus sentidos, cada parte do meu ser age como se estivesse separada de mim. É como se eu não conseguisse sentir mais nada, e perco-me tentando ser alguém para alguém. Me vejo e não consigo me enxergar."

Poucos anos depois esta correspondência virou material de pesquisa do neurologista alemão, Wilhelm Greisingner, que percebeu semelhanças entre os sintomas do relato na carta e de seus próprios pacientes. Sobre isso ele escreveu:

"Muitas vezes vemos os insanos, especialmente os melancólicos reclamarem de um tipo estranho de anestesia. Eles dizem que ouvem, enxergam e sentem, mas que os objetos não os alcançam, como se houvesse uma barreira entre eles e o mundo externo."

O relato de Gresingner é de 1845, mesma ano em que o poeta Amiel, usou pela primeira vez o termo "despersonalização", ao escrever em seu diário os sintomas de um estado em que se encontrava:

"Eu me vejo como alguém que enxerga a minha própria existência de um ponto de vista além do túmulo. em outro mundo. Tudo é estranho pra mim. É como se eu estivesse fora do meu corpo e da minha individualidade. Estou despersonalizado. Separado. À deriva. Será que isso é loucura?"

E no final daquele século, em 1898, o psicólogo francês introduziu o conceito da despersonalização oficialmente na literatura médica. E depois, Freud viria entender a despersonalização não somente como uma patologia, mas também como um mecanismo de defesa da mente. Sobre isso, Feud escreveu: "A teoria da psicodinâmica fornece base para conceituar a dissociação como um mecanismo de defesa. Dentro dessa estrutura a despersonalização pode ser entendida como um mecanismo de defesa contra sentimentos negativos, conflitos ou experiências."

A despersonalização é tratada de maneira bastante direta em Evangelion. Especialmente nos episódios 19 e 20. Shinji, acaba perdendo o controle da Unidade EVA 1, e desta forma não podendo controlar a máquina o inimigo é devorado em uma cena grotesca. Depois disso, não conseguindo lidar com os sentimentos negativos, com os conflitos e com a experiência da situação, o corpo de Shinji se desfaz, restando apenas o uniforme vazio. Essa é uma metáfora muito clara ao processo de descaracterização que o menino vinha sendo submetido desde que aceitou se transformar num piloto de EVA.

No final, tudo isso tudo me leva à fala de Satre: É porque eu existo como indivíduo que os outros também são.

uma reflexão sobre os dois últimos episódios

Existe um burburinho pela internet, muito generalizado por sinal, de que Evangelion só fica bom lá pelo capítulo 16 e só é bom até o capítulo 24, o antepenúltimo; sendo que os dois últimos, 25 e 26, são considerados um lixo. Eu devo discordar veemente disto. 

Por mais que os primeiros episódios sejam objetivos e eficientes em estabelecer o tom da narrativa e apresentar os personagens, essa primeira metade do anime é realmente bastante episódica e a sensação de que a trama está avançando para algo demora realmente a chegar. Mas, não acho que seja justo reduzir a primeira parte da história em algo que o telespectador precisa "suportar" pra chegar na parte que verdadeiramente valia a pena. Todos estes 15 primeiros episódios são essenciais, não apenas pra estabelecer todos os símbolos e conflitos que serão explorados mais tarde, mas porque nos dão momentos pra respirar e se importar com o objeto principal da trama: os personagens.

Esse preciosismo todo que relega a primeira parte da obra como algo inferior e até como algo passável, reflete a mesma miopia que tenho debatendo desde a aurora deste post: essa mania de pensar Evangelion principalmente como uma sequência de eventos e não como um estudo profundo de personagens. E o exemplo máximo disso se encontra logo à frente: a rejeição absurda que sofrem os dois últimos capítulos. 

O que mais se lê por aí, é que esse final é mal feito. Embasam este argumento no fato de que na época o orçamento pros dois capítulos finais era extremamente reduzido e de que os criadores fizeram às pressas qualquer coisa desastrosa que estava longe de ser a ideia inicial, porque a entrega já estava em cima do prazo; e que por isso eles não tem valor. Sim, realmente houveram problemas relacionados à verba na produção destes últimos capítulos, o próprio Hideaki já falou disto várias vezes, mas muito pelo contrário isso só fez com que Evangelion seguisse por uma vertente artisticamente mais abstrata, explorando mais da arte do desenho. 


a intenção do autor é a intenção do autor

Para além disto, ainda é questionada a verdadeira intenção do autor. Obras de arte são produtos do seu tempo e consequências de um milhão de influências complexas que vão muito além do que o autor sabe descrever. Não significa que só porque você queira fazer um filme denunciado o racismo que você não seja racista, por exemplo. 

Quando falamos sobre arte, por mais que uma coisa influência a outra, não dá pra resumir a obra no que autor quis fazer, mas sim concretamente o que ele fez. Se o que ele entregou no final é interessante artisticamente ou não. E, eu amo este final!

Hideaki consegue transformar estas limitações em linguagem, entregando um esquema único que funciona demais no sentido subjetivo. Numa repetição de frames e frases que coloca a superfície destes personagens contra a parede, como numa metáfora de autoquestionamento, eles se tornam sufocados pelo julgamento alheio enquanto precisam lidar com seus conflitos simbólicos. Talvez a parte mais tocante, e também a mais simbólica, é quando nos é apresentado o frame de Misato, que ao questionar a sua importância como ser vivente, se mostra cada vez mais quebrada por dentro enquanto organiza e empilha pecinhas de montar.

Enfim, o que incomoda essa galera é que o final da série não se converteu em um espetáculo megalomaníaco cheio de luzes, sangue e gritos como geralmente são os finais. Essa galera se chateia porque o final de Evangelion é uma composição orgânica de sensíveis movimentos intimistas que sempre, desde o primeiro capítulo, foram o foco da série. Por mais que nas cenas finais o anime não tenha entregado a "qualidade técnica" de que ele gostaria, ainda sim entrega o que autor queria desde o começo. 




O lance de usar os rascunhos, no último episódio, tá longe de ser uma prova de que foi algo mal feito ou alo do tipo; é inclusive uma forma muito inteligente de representar graficamente o que a narrativa está nos dizendo. Os personagens se despindo de toda parte externa e se expondo ao máximo.

O arco principal de Evangelion, é basicamente sobre como Shinji não via sentido para a própria existência e aos poucos vai começando a se identificar como um piloto dos EVA's, não porque queria, longe disso, mas porque obedecer ordens era um tipo de mecanismo de defesa, pra que não fosse mais uma vez abandonado. Shinji sentia ódio da sua própria pessoa e por isso não podia amar mais nada. E seu histórico de abandono o torna incompetente na tarefa de se relacionar com os outros e crescendo num mundo defasado, sem um referência familiar e um acúmulo de pressão social, não percebendo seu valor, tornou-se impossível enxergar a si mesmo. Shinji tem consciência das suas questões, mas as nega incessantemente, obedecendo sempre e sempre. E quando, Shinji é o único personagem a perceber isso negando-se a participar do plano de consciência coletiva, reconhecendo-se como um sujeito único e singular, destaca-se dos outros, já que todos à sua volta também estavam numa feroz batalha contra seus conflitos, mas muniam-se de máscaras pra não se sujeitarem a um papel de fragilidade. Ao reconhecer-se ele é aplaudido na famosa cena do Parabéns, a que virou meme, como um símbolo de coragem por priorizar a si mesmo. Isso funciona muito bem, não só pra sociedade japonesa, mas também universalmente: se enxergar não como função, mas como individuo. E talvez você não goste do Shinji, mas não dá pra negar que ele é um personagem muito bem construído. 

O Outro:

Durante a produção de Evangelion, Hideaki passou por um período bem complicado de depressão e a o anime surgiu da canalização desses sentimentos, bem como reflete toda sua essência. Shinji incorpora não só o próprio estado de espírito do diretor como também abraça qualquer jovem médio com dificuldade de se relacionar e que não vê proposito na vida. O fim da série pode ser visto como uma mensagem encorajadora neste sentido. Mas, não era isso que o público queria. Hoje pode se notar otaku padrão insatisfeito com a conclusão a espumar por fóruns na internet, mas na época a recepção foi ainda mais negativa, por parte do público e da imprensa. O resultado disso é o OVA The End Of Evangelion, que muitos consideram "o verdadeiro final de Evangelion. 




O filme começa com a cena mais inquietante de toda a franquia, a cena da masturbação de Shinji, sobre o corpo de Asuka que desacordada sobre uma maca descasava. Esta não é a única cena em que Shinji agride Asuka em prol e provar ao seu pai, ao telespectador e a si mesmo, a sua masculinidade, tomando para si o papel viril e energético que um protagonista de anime precisa ter. É perceptível que Shinji não se sente confortável neste papel, mas mesmo assim ele faz, porque é o que outros esperam que ele faça e sendo assim ele está fazendo. Não somente isso, mas o filme também entrega todo o espetáculo visual que cobrado: lutas em grande escala, cores encantadoras e aquelas cenas impactantes e memoráveis da sublimação de Rei. Tudo isso é tecnicamente impressionante, mas a realização da violência gráfica não é a única discrepância entre os dois finais, existe uma diferença essencial de tom. 

Para Hideki, o final que foi ao ao ar é o verdadeiro final, como ele mesmo já disse muitas vezes, é o final dele e o que ele considera. The End Of Evangelion, não é um final substituto, alheio à repercussão final da série, é o reflexo direto disso. Outro ponto curioso é que a experimentação gráfica também ocorre no filme, o que faz cair por terra aquele argumento vazio de que a linguagem visual não fazia sentido. Mas, se na série o anime quebra a quarta parede mostrando os rascunhos da obra, aqui ele a usa pra criticar a maneira como os animes funcionam. O final do filme não é um redenção, não é um aprendizado. É mais uma agressão. Como se pra esse público que não percebeu que a salvação pras dores daqueles personagens tenha sido o afeto, a única possibilidade da vida seja de fato machucar as pessoas.

Evangelion é uma obra vanguardista, que toca em temas delicados e aborda questões muito pessoais. O drama de Shinji, ministrado com muita delicadeza durante a primeira parte do anime, foi só um sinal de que esta história se tornaria revolucionária. Uma revolução não somente para a história do gênero Mecha, mas para a história do anime como um todo. Hoje em dia esses aspectos podem parecer mais comuns, afinal muitas obras atuais no mercado mainstream buscam retratar essas questões, mas vale lembrar que Evangelion é um anime de 1995, foi pioneiro em muitas coisas. 

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