a mentira, segue sendo uma das melhores novelas mexicanas

08:36

 

e eu estou falando da versão de 1998, embora seja a única com este nome, o argumento já teve diversas  adaptações...


um enredo demasiadamente chamativo porque a mentira tem perna curta

Sem sombra de dúvidas este é um dos argumentos mais originais das tramas mexicanas. Ricardo (Rodrigo Abed) amava Virgínia (Karla Álvarez), mas ela só queria tentar lhe dar um golpe (e estava dando certo), mas quando seu primo, João (Sergio Basañez) retorna da Europa ela vê a oportunidade perfeita pra um golpe mais seguro e dispensa Ricardo que extremamente injuriado ao perceber o golpe se suicida. Contudo João se apaixona por Verônica (Kate Del Castillo), sua outra prima e os planos de Virgínia vão por agua à baixo. Acontece é que Demétrio (Guy Ecker) irmão de Ricardo volta para vê-lo e descobre tudo o que aconteceu. Disposto a se vingar ele vai atrás da mulher que arruinou a vida de seu irmão, mas acaba se confundindo, pensando se tratar de Verônica, por quem se apaixona imediatamente. Percebendo, Virgínia implanta provas e joga todo a culpa para cima da prima que é difamada e subjugada. Para piorar Demétrio e ela se casam e juntos vão para uma pequena cidade inóspita, onde morava Ricardo. Lá Demétrio fará Verônica pagar pelo o que não cometeu, todavia, contudo ele se confunde entre amor  e ódio. O jogo vira quando Virgínia é desmascarada e Verônica tem sua dignidade recuperada tomando forças para conseguir se estabelecer e agora Demétrio é quem terá que sambar até conseguir recuperar o amor de Verônica.

Aqui nos temos uma história atraente que atiça o telespectador. Contada num tom policial vibramos à medida que a verdade vem à tona, mas a trama não se vale apenas disso. Temos um enredo muito bem explorado sobre tráfico de drogas e o consumo de drogas. Observamos o salafrário amigo de Virgínia seduzir e induzir jovens, à medida que os traficantes interferem nos negócios da família Negrette. 

Realizada para o horário pra 17hrs, a novela fez um sucesso estrondoso tornando-se a versão mais interessante dessa trama.

atuações mais naturalistas

Estamos acostumados com o exagero caloroso, até mesmo irreal, das telenovelas mexicanas. Esse é um estilo de atuação famoso por lá que chega às vezes passar uma certa inverdade. Mas, nesta novela podemos contemplar atores tentando fazer as representações mais naturalistas possíveis. Não há aquele desespero tradicional nas suas feições. Kate Del Castillo se mostra uma das melhores atrizes novelística da sua geração. Ela é centrada, carismática e está completamente dedicada à sua personagem passando assim muita verdade com a sua atuação. Você sinceramente é levado pra dentro do contexto. Guy Ecker, nosso brasileirinho, com certeza é o que chama mais atenção. Acostumado com roteiros policiais, o ator entrega uma atuação quase americanizada. Suas feições não são exageradas, mas elas são o suficiente pra chegarmos à conclusão de que talvez ele se trata de um psicopata. Karla, com sua cínica atuação, também não fica atrás. Aqui ela se mune de uma persona muito ingênua, mas consegue ser ácida o bastante pra haver desconfiança. Ela faz questão de parecer que é fingido e está nítido que sua bondade é duvidosa e só não vê quem não quer. Fora o trio principal toda a gama de atores selecionados está bem centrada no naturalismo das expressões. Destaco a presença de Rosa Maria Bianchi, grande dama do teatro mexicano que apesar de atuar num papel coadjuvante o representa com maestria. 

(adendo: não estou dizendo que as atuações exageradas são ruins, você consegue captar a mensagem através da exuberância, mas deve-se entender que o objetivo de A Mentira é criar uma obra mais realista, focada na captura natural das expressões humanas.)


personagens mais complexos

Os três personagens principais são bem mais complexos que estas tramas realmente costumam apresentar. Geralmente eles tendem a são superficiais e nos mostram poucas camadas. Demétrio é com toda certeza o melhor personagem nesta versão. Vemos os conflitos internos e morais do personagem que se descasca bem na nossa frente. O vemos agressivo, complexado, irônico e perturbado. Ele ama Verônica por que a acha a mulher de sua vida, mas odeia Verônica por achar que ela é a causadora de todo mal. O Fascínio, o desejo, a paixão e ódio andam juntos nesta ocasião. Todo comportamento dúbio do personagem, por mais que seja complicado, é justificável. Enquanto isso acontece podemos assistir uma Verônica confusa e que deseja entender tudo o que acontece ao redor. Ela almeja sair deste relacionamento, tem medo, mas também sofre de uma espécie de Síndrome de  Estocolmo, mas não exatamente. Entretanto, Verônica não é apenas uma mocinha convencional. Ela não chora ou sofre injustamente neste primeiro momento. Ela quer descobrir  o que está acontecendo e qual é o motivo por estar sendo tratada tão mal pelo homem que  anteriormente a havia seduzido. Ela peita o comportamento dele e este talvez seja o melhor momento da história. Quando os dois personagens exalam tanta química nas cenas calorosas de briga carregadas de emoção e mobilidade. Verônica tem uma personalidade forte e marcante, mas ela não é uma deslocada ou uma barraqueira desajeitada, muito pelo contrário. Contudo à medida que tragédias e mais tragédias vão acontecendo na vida da personagem a vemos se tornar cada vez mais fraca emocionalmente. A um passo que depois de um sequestro, duas tentativas de assassinato e um falso diagnóstico de câncer ela está completamente desestabilizada e sem estruturas precisando do apoio emocional de todos à sua volta. Então toda aquela força dá lugar a uma fragilidade e carência justificável. Parece até que ela segue o caminho contrário das mocinhas típicas (primeiro frágil, passa por um mundarel de coisas e então se torna decidida e voraz). É notar então o trabalho para humanizar esses personagens. Ninguém depois de passar por uma penca de acontecimentos trágicos se torna alguém pleno ou constante. Talvez a personagem que mais tenha me deixado surpreso tenha sido Tia Sara. Depois de recriminar o comportamento mais pra frentex e livre de Verônica, quando descobre que foi  dura demais com a mesma para privilegiar Virgínia, entra num sentimento de tristeza profundo. Ela se sente mal e culpada por tudo de errado que se deu e obviamente envergonhada por ter desprezado tanto a sobrinha, sempre julgando-a. Desde o início nós sabemos que Sara não é uma vilã, ela não se motiva assim, mas sua hipócrita e conduta moralista é antagônica à personalidade de Verônica; e grande parte dos acontecimentos se dão por consequência disso, e ela sabe disso quando descobre que foi manipulada. O conflito não dura apenas alguns capítulos, podemos perceber que Sara está completamente arrependida e por mais que peça desculpas e seja então desculpada essa sensação não passa, ela precisa se desculpar constantemente pois sente o peso da culpa. Mas esta culpa não a impede de sentir mal e também compadecida quando Virgínia fica tetraplégica. Apesar de ter seus motivos para desejar que ela desapareça ela ainda tem a sua humanidade. É tudo muito conflituoso nesse sentimento. Não é como se ela esquecesse disso alguns capítulos depois. Percebe-se que essa é uma outra tentativa de deixar a história mais realista.

a mentira tem perna curta

Mas esta não; acredita? É impressionante o legado que A Mentira deixou, não só apenas pela sua trama que rendeu diversos remakes, mas também na sua criatividade visual. As novelas para o horário das 17h geralmente recebiam orçamentos menores, por isso contavam com uma produção mais reduzida. No entanto, Sotomayor não se declarou vencido. Sabendo que não teria cenários tão surpreendentes ele decidiu trabalhar com a sua câmera e entra aqui uma das telenovelas mexicanas que mais trabalhou com a fotografia e seus recursos, explorando muitas alternativas possíveis que deram uma característica própria à obra. 

Sotomayor utiliza muito do zoom pra decorar a fotografia. Podemos vê-lo usar aquele zoom de close, muito característico no cinema nos anos 70. Outro recurso foi o dolly zoom (famoso efeito vertigo) usado por um par de vezes em diversas situações. Teve uma hora que parecia que a cama de Verônica estava sendo puxada, deu uma vertigem (haha). Entre estas técnicas de filmagem, as que mais chamam atenção com certeza são as de perspectiva. Algumas vezes a câmera toma o olhar de algum personagem, às vezes ela se movimenta com ele dando uma sensação atmosférica, como se nós estivéssemos lá ou mesmo quando ela está filmando de baixo para cima ou de cima para baixo, por entre portas ou curvas. Hora ou outra a câmera caminha em volta dos personagens circulando-os, faz planos de corte único. Recursos de composição de imagem também são usados. Percebemos influências dos filmes noir, com persianas refletindo nos personagens, imagens contra luz e silhuetas e muita sombra em determinados momentos.

Quando se trata de telenovelas (e eu falo das latinas num geral) ousar na fotografia parece algo arriscado e que pode afastar o público, mas se feito de maneira correta trás o dinamismo necessário. Nas tramas brasileiras atuais temos visto muitos esforços pra tentar trazer algo diferente (seja uma câmera que acompanha os movimentos dos personagens em Avenida Brasil, sejam os ângulos rebuscados de Verdades Secretas ou na poesia dos cenários encantadores de Velho Chico e Meu Pedacinho de Chão), tornou-se quase um pouco comum para as tramas televisivas por aqui apostarem em recursos que geralmente são usados no cinema, mas ainda hoje, no restante da América Latina, encontramos uma certa resistência e mesmo que eles já tenham algumas tramas mais ousadas, como as narconovelas, a câmera ainda é contida, estática e preguiçosa e quando tenta algo diferente se vale de closes ou relances dos blockbusters hollywodianos. É realmente interessante que A Mentira tenha se amparado à fotografia para disfarçar seu baixo orçamento, mas isso acabou criando uma corajosa ambição que a fez sair à frente de suas irmãs de época. 

A verdade saindo nua do poço

Apesar de muito interessante o enredo teve uma barriga a partir da segunda metade, que dura do capítulo 60 ao 85. São quase 20 capítulos tentando se sustentar nas tramas paralelas que embora tenham sua importância, como o plot de  Karla e Pêpe com as drogas e seu final trágico, mas isso não é o suficiente. Carlos Sotomayor aproveitou a audiência pra esticar a trama até o capítulo 100, mas não teve criatividade suficiente pra movimentar a trama principal, que na verdade é o ponto alto dessa novela. Durante este período nada de realmente relevante acontece com Verônica e Demétrio, com algum esforço uma personagem aleatória surge na trama pra tentar atrapalhar o romance, mas ela simplesmente consegue fazer o plot entrar num marasmo ainda maior e ficou claro que este era apenas um recurso de esticamento. Além disso, desta barriga em diante, a trama ganha um ar mais folhetinesco e menos ousado, na questão fotográfica talvez pra segurar o público, que estava totalmente vidrado a esta altura  do campeonato. De bom é que nessa fase quem realmente movimenta a trama com todo fôlego é Virgínia, que com suas tramas e pilantragens consegue colocar algum tempero nesta barriga. Apesar disso, nos capítulos posteriores o folego é recuperado, mas Virgínia continua sendo o destaque. E isso é curioso, pois se na primeira metade a vilania de Demétrio é quem toma rumo deixando-a como uma coadjuvante; na segunda metade, porém, ela recupera seu lugar e se torna uma vilã digna para trama que explora com vontade o cinismo e ingenuidade que e  personagem consegue transmitir, graças à interpretação louvavel de Karla Álvarez.


meia verdade é sempre uma mentira inteira...

Longe de ser uma das favoritas do público, embora o casal protagônico figure muitas listas dos top 10 melhores casais de novelas, a Mentira se consolidou como uma verdade. Seu sucesso não está pautado apenas nos seus altos índices de audiência (com 28,7 quando a média era 17 pontos; um fenômeno popular), mas também se valida através do seu legado. Sua coragem em apresentar protagonistas com motivações dúbias (seja o complexado anti-herói Demétrio ou a nada convencional mocinha Verônica), em apostar numa fotografia corajosa e sua despretensão para o óbvio ajudam a firmar seu nome no hall da fama das grandes novelas clássicas mexicanas e talvez uma das mais vanguardistas no contexto que lhe cabe. Dizem que a mentira corre mais rápido que a verdade e eu devo concordar que lá em 1998 A Mentira já estava bem à frente do seu tempo. Diferenciando-se das novelas rosas por total, apresentando conceitos, jeitos e formas que apenas viriam a ser explorados anos mais tardes nas telenovelas; consolidou-se como um clássico memorável, relevante e influente. Seus seis prêmios  no TV Novelas (maior premiação de telenovelas no México) e sua indicação ao Emmy Latino comprovam isso. Lançada em 1998 segue influenciando de maneira absurda o meio novelístico e talvez por isso eu deva dizer que pelo menos esta mentira tem perna longa.

You Might Also Like

0 comentários

Mais Lidas

Postagem em destaque

porque você precisa ver Liv Ullman em tela pra ontem

Liv começou sua carreira no teatro com alguns bons personagens em ótimas peças e não demorou pra que Ingmar Bergman, um dos diretores de cin...

Posts mais vistos