manoel carlos e a sua delicada crônica do cotidiano

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cenários aconchegantes...

 Com toda certeza Manoel Carlos é o autor de novelas mais refinado da teledramaturgia brasileira. Há uma coisa aconchegante nos seus textos. Aquelas situações tão cotidianas e aquele diálogo despretensioso que quase te convidam a fazer parte daquela situação. É uma conversa no café da manhã, é uma conversa na fila do banco ou até mesmo com uma desconhecida no elevador. Não é um assunto sobre um acontecimento do roteiro, e nem mesmo pretende ser, é uma conversa sobre o clima, sobre o calor, sobre um desencontro ou sobre as últimas férias de verão (já que no universo do Maneco ter férias de verão é uma realidade) e suas possíveis desventuras. Esse diálogo não está ali pra movimentar a trama ou se quer pra dar andamento na história, ele surge como um recurso de ambientação. Como uma estratégia pra aproximar o público daquela burguesia boêmia e cheia de "white people problems" e de certa forma ele consegue fazer isso muito bem. 

Eu jamais foi ao Leblon (fui à praia somente duas vezes) e se quer sei o que é passar a manhã numa mesa de café gigantesca  debatendo sobre a violência urbana do Rio, mas eu consigo me sentir inserido neste cenário justamente por ser uma conversa tão cotidiana, às vezes trivial. É a conversa que eu teria com meu amigos ou minha  mãe na hora do desjejum ou do almoço. Provavelmente se eu estivesse num elevador com uma pessoa desconhecida ou até com um vizinho menos íntimo eu estaria reclamando do calor, isso é tão real. É uma conversa corriqueira, simples e tão presente no dia a dia. Estes cenários tão confortáveis criam escapes quase que imperceptíveis para o telespectador. É a casa  da vó, é um aras com cheiro de roça, é uma ida a pracinha com as amigas, é uma festa junina de bairro...


tempo pra respirar...

Maneco possuí verdadeiros melodramas. Isso é, são tramas tipicamente novelísticas e dramáticas. Ora pois, uma mãe que perde o próprio namorado para filha adolescente que mais tarde sofre de um câncer e esta mesma mãe como um último recurso pra salvar a filha decide engravidar. São dramas que poderiam render novelas cheias de peso e carga emocional demasiadamente pesada. Quase uma tragédia grega, mas ele nos dá constante momentos  pra absorver a trama e digerir o que vai acontecer ou está acontecendo com tanto naturalismo que nós nem se quer percebemos isso. 

Tomemos por exemplo o argumento inicial de Por Amor: Helena (Regina Duarte) é uma mulher de meia idade bem resolvida e com alguns relacionamentos fracassados. Sua filha, Eduarda (Gabriela Duarte) que se comporta como uma mimada e por vezes ingrata sofre dois abortos seguidos e corre risco de não poder mais ser mãe. O inesperado é que Helena descobre estar grávida de um de seus casos, Atílio (Antônio Fagundes) e coincidentemente Eduarda também se descobre grávida na mesma época. A gravidez de Eduarda é de risco e pode ser a sua última. Todavia, contudo, no dia do parto de Eduarda (que ocorre no mesmo dia do parto da sua própria mãe; cara isso é tão novelístico) seu filho acaba morrendo e tomando conhecimento disso e de que Eduarda não vai mais poder ter filhos por sérias complicações no útero, querendo evitar que a filha tenha um casamento fracassado, mais uma decepção ou que venha sofrer, Helena troca seu bebê vivo pelo filho morto da filha. É de uma irresponsabilidade sem tamanho, de uma falta de ética quase sem noção, mas parece algo que uma pessoa real faria. Que uma mãe cansada de ver uma filha sofrendo por não conseguir ser o que tanto queria: mãe. É importante dizer que essa troca de bebês não acontece no primeiro capítulo, nem no primeiro mês, muito menos nos primeiros cem capítulos, mas sim na metade da novela. Entre um aborto e outro nós temos tempo pra respirar e o mais importante nós temos tempo pra nos preparar pro quê se virá a seguir. E depois que veio, nós temos mais tempo pra digerir tudo, pra que assim no capítulo final o embate aconteça, encerrando assim um ciclo com aqueles personagens. 

Ele cria um conflito, nos apresenta, nos prepara, desenvolve-o e resolve-o nos deixando imaginar o que se virá depois. No meio do dramalhão ele insere cenas de pessoas simplesmente andando por Ipanema ao som de alguma bossa de Tom ou João Gilberto, ele insere outros conflitos que são tão puramente rotineiros como o corte da energia porque alguém simplesmente teve preguiça de ir pagar ou até mesmo um personagem contemplando uma árvore por quase um minuto inteiro sem dizer nada. Então há um equilíbrio, uma temperança que passa naturalidade nas questões. A verdade é que essa trama sem esses espaços com certeza chamaria muito a atenção, mas não iria parecer tão real quanto pretende ser. E o curioso é que esta temporalidade mais lenta poderia até afastar o público, mas o sucesso de audiência de Por Amor em suas quatro reprises mostra o contrário.

as relações humanas e a sensibilidade

Quando Helena percebe que Eduarda não consegue produzir tanto leite quanto a criança demanda ela passa a amamentar a criança. No começo Eduarda acho lindo, mas depois ela se sente enciumada de ver a mãe tão próxima do seu bebê. Ela se sente menos mãe com isso, como se não fosse capaz de cuidar da criança. Isso gera um primeiro conflito. Depois disso, Helena querendo que a criança tenha uma amamentação digna passa a ir na casa de Eduarda quando ela está trabalhando e amamenta o menino às escondidas. Quando descoberta acaba vindo um outro conflito. Mãe e filha ficam estremecidas e Eduarda sente que sua maternidade está sendo questionada de alguma forma. Mais tarde, Atílio descobre a verdade, que ele é o pai do bebê de Eduarda e confronta Helena. Tal acontecimento o chateia de tal forma que ele decide quebrar definitivamente sua relação com ela, que prefere manter a mentira. Contudo, situações acontecem e eles precisam conviver, gerando um estranhamento e é neste clima que a novela termina, com um clima de distanciamento, mas também de cumplicidade entre os dois. E nós ficamos sem saber se eles vão conseguir curar esta uma relação algum dia. 

A cena final da novela, em que Eduarda descobre a verdade lendo o diário da mãe gera uma das mais lindas cenas (bem como uma das mais fascinantes) da teledramaturgia brasileira. Novamente Eduarda se sente ameaçada e com toda razão ela esbraveja pra cima da mãe. Ela não consegue aceitar que não  conseguiu ser "mãe" o suficiente pra gerar um bebê saudável, mas agora já amando o Marcelinho, se desespera com a ideia de que ele não seja tão dela e por consequência dela seja tomado. São tantas questões se passando na cabeça de Eduarda que ela se quer sabe expor tudo e fica um diálogo confuso da sua parte. Helena diz algo como: "Você acha que eu seria capaz de te tomar o Marcelinho? Que eu seria capaz de te dar ele e depois tomar? Se eu fiz isso foi pra te ver feliz. E agora eu iria ser capaz de causar a sua infelicidade?" Essas frases ditas por Helena justificam seu ato egoísta com muito louvor. Ela é humana, não é uma protagonista perfeita, idealizada. É uma mulher que tem suas motivações e algumas delas são tão egoístas que só poderiam ser puramente humanas. 

Há uma sensibilidade no texto do Maneco. Ele é casual, mas profundo. Essa forma tão delicada de abordar as relações humanas é o que me fascina mais nas suas histórias. Os conflitos de convivência com certeza são os maiores vilões das novelas dele, que não escreve vilões. Alma (Marieta Severo), Eva (Ana Beatriz Nogueira), Marta (Lília Cabral) ou Branca Letícia (Susana Vieira) podem até parecer vilãs, mas quando você observa o dissecamento dessas personagens, percebe que são tão presas em suas bolhas ou tão amarguradas que se tornam incapazes de aceitar o real, desprezando-o e como consequência gerando conflitos pra todos ao redor. E é isso. Os conflitos que tornam alguns mocinhos e outros vilões. Suas motivações, a pessoalidades e perspectivas. Talvez a trama que mais reflita isso seja A vida da Gente, da qual foi supervisor de texto para Lícia Manzo, que conta com muita delicadeza a história de duas irmãs Ana (Fernanda Vasconcelos) e Manu (Marjorie Stiano) que com as desavenças do destino constroem uma linda relação que apesar de ter se abalado com os conflitos da convivência, permanece única, cheia de amor e importância. 

ps: e sim há muito dedo dele nesta trama, basta que se observe as outras tramas que Lícia escreveu, ou com outros autores ou sozinha, e perceber que a Vida da Gente é totalmente Maneco.


white people problems...

Joice (Carla Marins) surtou quando descobriu que na verdade era adotada, mas sem entender exatamente o que estava acontecendo e como havia se dado esta adoção ela se revolta contra Helena (também Regina Duarte) e passa a se comportar como uma ingrata ridícula. 

Capitu (Giovana Antonelli) uma menina que sinceramente tem uma agradável situação financeira passa a se prostituir pra poder cuidar do seu filho de uma maneira mais folgada. Tudo isso seria até aceitável se Capitu simplesmente não precisasse disso. 

Tudo isso parece fútil demais pra nossa realidade, certamente...

Manoel Carlos não sabe escrever outra realidade que não seja a de uma mulher branca e rica, ou pelo menos classe média, que sofre com seus problemas burgueses. Tivemos a comprovação disso quando ele precisou escrever sua primeira Helena preta, interpretada pela grande Taís Araújo. E é exatamente assim que ter que ser. É esse núcleo social que ele cresceu vendo e é sobre esses problemas que ele consegue escrever. Todavia catalogar Manoel Carlos apenas como um escritor de "dramas burgueses desinteressantes para o brasileiro médio" é pura bobagem. Ele insere temas extremamente importantes nos seus roteiros e os desenvolve com muita sensibilidade. Mulheres Apaixonadas por exemplo está cheio desses conflitos sociais. Temos um casal de lésbicas que sofrem homofobia na escola, temos uma jovem ingrata que maltrata seus avós, temos uma filha que tem vergonha do seu pai pobre, temos uma libertina que se apaixona pecaminosamente por um padre, uma professora alcoólatra, uma mulher com câncer de mama, a que sofre de um ciúme doentil... E talvez o mais importante desses temas: a professora que tem um marido psicopata e que se apaixona de uma maneira questionável por seu aluno, quase obcecada, causando a ruína desse jovem. Violência doméstica, fragilidade psicológica, suspense e egoísmo... É uma gama de assuntos extremamente possíveis na nossa realidade. Não há futilidades aqui. E eu poderia falar sobre a abordagem extremamente sensível sobre a síndrome de down em Páginas da Vida. 

O cotidiano tem suas tramas...

Parece distante imaginar que o dia a dia que soa tão monótono, sem acontecimentos possa gerar contextos tão empolgantes. Quem poderia supor que os dramas da minha família dariam uma novela. E sempre acontece uma coisa ou outra de vez em quando, mas não acontecem várias. Uma única coisa consegue criar uma outra série de acontecimentos. Nesses momentos Maneco avalia a consequência e o que ela causa mediante a sociedade. É algo difícil de se apurar. Precisa-se de um olhar clínico, um estudo social mesmo. É preciso ver a verdade da vida, a beleza do cotidiano, a sensibilidade das relações humanas, a dificuldade da convivência. Eu costumo dizer que o Maneco tem aquela coisa meio contemplativa do cinema do Ozu misturado com a complexidade existencial do Bergman. Sem maniqueísmos, exageros ou circo (não que isso seja algo ruim, não é isso que eu estou dizendo) ele tece suas tramas nos acontecimentos cotidianos, constrói seus conflitos nas tramas corriqueiras do dia a dia. Ele transforma a nossa vida numa novela e aí quando eles dizem "isso parece coisa de novela" pra um acontecimento absurdo é porque realmente parece. Mas, ir na padaria comprar um pão e esbarrar na vizinha que vai te contar uma fofoca da amiga da prima dela também é coisa de novela; de novela do Maneco. 

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