o final de midssomar é mais triste do que você pensa
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Lançado em 2019, através da lente de Ari Aster, Midossomar faz parte da onda de renascimento do terror, apelidada de pós-terror, dos quais também descendem os ótimos Corra (2017), A Bruxa (2015), Demônio de Neon (2014), O Farol (2020) e o mais recente Noite Passada em Soho (2021). O filme rapidamente caiu na proeza de agradar tanto público como crítica, ganhado status de clássico do gênero.
É perceptível que Midsommar é uma daquelas obras que rendem intermináveis discussões seja numa mesa de café ou num artigo sobre. E não é exagero dizer que sua influência já pode ser notada, basta que lancemos um olhar sobre o interesse pelo folk-horror e sua estética que têm tomado o Instagram nos últimos meses ou para o recente lançamento de Lorde, o álbum Solar Power que mais parece a trilha sonora perfeita pras imagens compostas por Ari Aster, e talvez o exemplo mais claro talvez esteja na faixa The Path, que poderia ser muito bem inserida em algum momento específico do longa e ornaria perfeitamente. Ademais, depois de assistir mais uma vez, na noite passada, minha percepção sobre aquela cena final mudou completamente.
Quando Dani (Florence Pugh), sorri aliviada, olhando para o horizonte como se vislumbrasse reconfortantes paisagens, sentimos também e alguma coisa nos faz imaginar que no fim, apesar dos apesares, tudo deu certo, mas o que o telespectador não sabe é que ele está redondamente engando.
Uma jornada silenciosa de abuso
Percebemos desde a aurora do longa, que Dani está cercada de pessoas, que de alguma forma, estão sendo sufocantemente abusivas. Já nos primeiros minutos somos apresentados ao drama de sua irmã, que sofre de uma profunda depressão. Aquela situação parece estar consumindo demasiada energia de Dani, já que ela precisa lidar sozinha com as crises e tentativas de suicídios da irmã. Extremamente fragilizada e exausta, a protagonista tenta buscar apoio em seu namorado Christian (Jack Reynor), que no exato momento estava procurando uma alternativa menos "dolorosa" de terminar aquela relação que há muito não lhe apetece. Durante a ligação, que é curta, Christian é displicente e frio, ele percebe o desespero de Dani, mas não consegue sentir nenhuma empatia ou se quer simpatia.
A partir disto, construímos uma profunda apatia por Christian. Isso é, ele sabia que Dani estava numa teia de abuso psicológico e chantagem emocional criada por sua irmã, mas estando com ela, ao invés de tentar oferecer algum apoio verdadeiro, sentia-se desresponsabilizado e alheio àquela situação, como se estivesse "perdendo a sua juventude" se importando com os problemas de Dani, mesmo que na verdade ele não se importasse nenhum um pouco. E mesmo depois da tragédia pessoal por ela vivenciada ele não se sente solidário, mas apenas mantém o relacionamento por obrigação.
Dani estava sozinha, sabia disso. Não havia outra forma de amparo senão a de se conformar com as migalhas e descaso de seu namorado, que nem mesmo pena da sua situação, sentia. Por isso, quando acompanhamos a narrativa se converter a favor da nossa protagonista, a partir do momento em que ela é elevada ao posto de Rainha de Maio, tendemos a considerar que o desfecho da história é realmente positivo, ou como somos acostumados "feliz".
Realmente dá uma satisfação, e isso é estranho pra caramba, assistir o corpo de Christian envolvido pela carcaça do urso ser lentamente consumido por pelas chamas. A sensação que dá é que Dani, finalmente encontrou naquele povo uma família, um acolhimento. A cena do choro coletivo é com certeza o momento que mais evidencia essa impressão. Mas, nem tudo é o que parece...
E depois disso tudo?
Dani pode ter encontrado tudo naquele povo, menos alento. Talvez por causa das cores, a beleza das flores, as rodas comunitárias e os abraços coletivos o absurdo da situação tenha sido amenizado, mas é bom lembrarmo-nos que toda aquela situação havia sido forjada pelos membros da seita.
Christian, por mais abusivo que fosse, estava esperando a brecha certa pra terminar tudo com Dani e embarcar na sua "nova vida livre", traí-la não parecia uma opção, mas Christian foi lentamente induzido a fazê-lo. Quando, o líder da seita percebeu que o rapaz não estava comprando o discurso, drogou-o, para que pudesse consumar a celebração, fertilizando Maja (Isabelle Grill), numa poética cena de estupro. Além da beleza dos corpos nus, dos gemidos e da trilha sonora cativante, temos um Christian coagido e ameaçado, que claramente não deseja estar ali, assustado, pois nesta altura já havia encontrado os corpos de seus amigos sacrificados, e sob efeitos de variadas substâncias alucinógenas, contudo, sem alternativas.
Do outro lado, as coisas também não estavam tão agradáveis para Dani. O flagra da traição também foi forjado, numa astuta estratégia pra que o sentimento de ódio contra Christian finalmente florescesse. Dani, que também estava sob efeito de várias outras drogas alucinógenas, é coagida por Pelle (Vilhelm Blomgren) a aceitar a natureza estranha dos acontecimentos à sua volta, além de fazer parecer que ele se importava com suas dores, criticando a frieza e descaso de Christian, mas na verdade apenas estava interessado na conclusão do ritual.
Naquela caótica cena final, onde toda aquela gente está empaticamente gritando de dor, isto é, de uma suposta dor, por aqueles que estão sendo sacrificados, vemos da face cansada de Dani brotar um sorriso indecifrável. É claro, por mais que houvessem questões, Dani não concordaria com a carbonização de seu namorado abusivo. Ela, pode ter sorrido, e no fundo nós nunca vamos entender o real motivo de sua genuína felicidade, mas quando o efeito daqueles alucinógenos passarem, ela precisará se deparar com mais uma tragédia, a de perder seu namorado e seus amigos, e novamente, assim como na perda da sua família, se sentirá culpada.
Não, o final de Midssomar não é feliz. Não, Dani não encontrou uma família naquele povo, e este é um filme que sutilmente nos mostra uma vítima de abuso silencioso.
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